domingo, 17 de maio de 2009

Não chega a ser uma Simone...



A inspiração para esse post é a lembrança de uma foto que uma amiga minha me mostrou. Tratava-se de um daqueles momentos icônicos e inerentes à vida familiar, o aniversário de uma filha. A foto captava o exato instante em que os convivas se dirigiam para o recinto no qual estava armada a mesa. Ao centro da composição víamos os arranjos, os doces, os salgados e os refrigerantes. O bolo ocupava posição central, seus três andares davam-lhe um destaque e até uma magnificência. Os pets de coca-cola traziam o elemento vertical para a foto. Em suma, uma representação da fartura e de um banquete festivo.

Logo acima do bolo, via-se a janela aberta que revelava um cenário intruder, levantava-se uma favela, ornamentada pelo milhar das minúsculas caixas feitas de madeira, tijolo nu e painéis de lata. Os barracos afloravam, em terceiro plano, mas confirmando a presença das peculiaridades da sociedade brasileira. Pareciam felizes em ocupar aquele lugar, confirmando certa brasilidade à composição, uma lembrança de que o cenário classe média do primeiro plano estava subordinado a macro realidade.

Lembro de ter dito algo sardônico, “belos barracos”, minha amiga tomou a foto descompondo minha indiscrição e incapacidade de me ater ao tema principal: a festinha de sua filha.

A proximidade espacial entre as favelas e os bairros classe média não minimizam as gritantes diferenças sociais existentes. A favela é uma intrusa, uma ousada, como gostam de dizer seus jovens habitantes “nós somos os mais ousados”. Vingam-se por diversos meios, com um desafio, por vezes ameaçador, por vezes irreverente, ao modo de vida das respeitáveis famílias pequeno burguesas.

É aqui que entra a porra da buceta:

E aí seu otário
Só porque não conseguiu fuder comigo
Agora tu quer ficar me defamando né?
Então se liga no papo
No papo que eu mando

Eu vou te dar um papo
Vê se para de gracinha
Eu dô pra quem quiser
Que a porra da buceta é minha

É minha é minha
A porra da buceta é minha
É minha é minha

Se liga no papo
No papo que eu mando
Só porque não dei pra tu
Você quer ficar me exclamando
Agora, meu amigo
Vai toca uma punhetinha
Porque eu dô pra quem quiser
Que a porra da buceta é minha


Canta-se essa música um grupo chamado “Gaiola das popozudas”, um dos vários conjuntos musicais de funk que desfrutam de certa popularidade entre alguns setores da sociedade brasileira, sobretudo os estratos sociais economicamente menos favorecidos.

Para alguns, inclusive, “A porra da buceta é minha” não seria música, mas uma anti-música. Além de não ter as qualidades técnicas (?) necessárias, seria chula, vulgar e com ranços machistas mal disfarçados. Os apreciadores da MPB alegam queda da qualidade musical, os apreciadores do rock falam em alienação, os amantes de música clássica dizem com disfarçado elitismo “a latrina está aberta”. Mas nós não! Rimos satisfeitos ao vermos as suscetibilidades dos civilizados serem ofendidas com tão pouco.

Esse funk gritado do alto das favelas e dos sons dos carros dos rapazes de 18 anos tem uma origem, nasceu de dentro dos morros e exprime uma percepção estética bem peculiar. Não se trata de argumentar que o valor desse gênero deriva de seu berço de origem, o fato de algo ser popular não o torna necessariamente bom. Inclusive há uma crítica que deve ser feita ao machismo presente em muitas dessas músicas. Mas me parece que esse não é o caso.

A “porra da buceta" é minha escancara diferentes entendimentos da sexualidade. Novamente a favela desafia a visão romântica e o ethos patriarcal que permeia os padrões de sociabilidades burgueses. Na canção acima, a protagonista é uma mulher que se coloca como proprietária do seu corpo, capaz de fazer escolhas que tange ao seu próprio universo existencial. Seu interlocutor é um homem, supostamente um ressentido pela recusa da dama em lhe fornecer certos favores sexuais. Suas injúrias são respondidas com veemência: “Eu dô pra quem quiser / Que a porra da buceta é minha”.

A passividade da mulher cede espaço ao reconhecimento de que a ela cabe a decisão quanto à consumação do ato romântico (e aqui seria melhor dizer, sexual). Confrontação a um padrão de sociabilidade no qual o homem seria o elemento ativo e potente. Por conseguinte temos uma estética anti-romântica. Vale lembrar que o romantismo foi uma auto-justificativa à individualidade e à operosidade da burguesia, também uma alegação de que haveria a paixão nos seus arranjos matrimoniais, obscurecendo as estratégias para a manutenção de privilégios e a perpetuação da propriedade no seio de uma mesma classe social.

Enquanto os temas românticos preferem qualificar partes neutras e respeitáveis do corpo feminino, a canção do grupo “Gaiola das Poposudas” não tergiversa ou oblitera nesse ponto. O que está em jogo é a cópula, não os belos olhos da dama, sua pele alva, seus cabelos sedosos ou seu mavioso hálito. Não há eufemismos possíveis no discurso da favela já que inexistem interesses a serem camuflados. A união não implica acordos prévios sobre bens e capitais, trata-se meramente de uma junção carnal.

As famílias bem comportadas, em seus lindos palacetes verticais feitos de concreto armado, ao ouvirem tal canção balançam a cabeça com indizível desprezo e consternação. Para elas trata-se de uma imoralidade e dentro dessa ótica a moralidade derivaria de outras esferas: do patriarcado, das relações misóginas existentes nas grandes esferas de poder, da necessidade do clero na legitimação dos arranjos matrimoniais. Enfim, a promiscuidade dos negros da favela (como diriam os nossos bons representantes da reação) é um problema quase malthusiano, conseqüência da baixa escolarização e da falta de um acompanhamento religioso.

Parece-me o contrário, um ato de afirmação perante a hipocrisia burguesa. No caso específico, temos a ascensão da mulher à condição de agente histórico, de chefes de família (não são elas que sustentam seus filhos?) e de seres capazes de efetuar decisões e utilizá-las para afirmar suas identidades em relação ao mundo. Puro existencialismo.

Claro que não chega a ser uma Simone de Beauvoir, mas também não estamos falando de normalistas virgens de 18 anos, que dizem amém. Amém para o pai, amém para o padre, amém para o marido.

Até mesmo porque a porra da buceta é delas.

6 comentários:

  1. Novamene venho com um tema marginal às reflexões desse espaço, mas acho que o Márcio vai encontrar um vínculo...

    Desa vez fui eu que me coloquei a falar sobre algo que não entendo, a música... A seguir: "O policial é nosso amig?"

    ResponderExcluir
  2. A emergência do Capitalismo veio junto da criação de toda uma moral. Nesse momento não surgiu apenas a divisão entre força de trabalho e meios de produção. Um sem número de idéias foram reestruturadas ali, como as de amor, honestidade, saúde, higiene, civilidade... Ou seja, uma nova ordem emergiu.

    Contudo, como tudo no capitalismo, essa moral também vivencia uma constante adaptação em resposta às novas pressões. Sendo assim, as visões sobre o amor e o sexo também se transformaram. Ao lado do amor romântico, até mesmo em reação às atitudes sexuais libertadoras, outras visões das relações amorosas também emergiram, inclusive aquelas que tratam amantes como mercadorias.

    Sendo assim, temos que tomar cuidado, pois nem toda crítica ao amor romântico significa um rompimento com a moral burguesa...

    Se as popozudas apresentam uma visão mais igualitária e libertária do amor e do sexo... bom, isso eu já não sei... mas que a discussão é válida, isso com certeza ela é.

    ResponderExcluir
  3. Ah não, mas eu nem acho que o que elas estão propndo seja uma relação mais igualitária. Falar dessas músicas implica reconhecer a erotização do corpo do homem e da mulher como um elemento mercantil, confinando determinados estereótipos, muitas vezes tão opressivos quanto a moral burguesa.

    Todo modo, especificamente essa música ela tem uma estrutura que não deixa de ser uma provocação a uma concepção hegemônica do amor.

    Mas ainda no que concerne essa discussão, é importante lembrar que o tema do amor/sexo foi,na maioria das vezes, tema marginal na pauta dos grandes pensadores (com a imediata exceção de Freud...).

    Mas, minha inteção aqui era sugerir que a moral popular é mais visceral... ela é menos abstrata e alusiva.

    Em suma esse tema que sempre foi tratado de forma esdúrxula. Basta pensar nos contraditórios textos de Saint-Simon ou mesmo de Karl Marx. Mesmo Simone de Beauvoir recebe algmas críticas contemporâneas por ter enfatizado em demasia a dimensão biológica da mulher.

    ResponderExcluir
  4. Minha preocupação com algumas "expressões culturais" na verdade se refere mais ao risco que elas expões do que ela em si... o funk é assim... pra mim cada um dá o que quer e quando quer... e outra, ouve esse tipo de música quem quer tambem!
    Mas e quanto aos "filhos do trem", ao sexo praticado sem qualquer tipo de proteção, as mães solteiras pq nem sempre sabem quem é o pai, ao incontavel número de meninas que são mães precoce??? eu sei isso existe em qualquer lugar, em qualquer classe social, o problema é que quanto mais baixa a classe pior é o acesso aos serviços basicos, e pra mim o funk nao está preocupado em expor os problemas, em discutir amor/sexo, ta preocupado com o que qualquer músico tá: em fazer shows, vender discos, sair do anonimato. este pano de fundo, tem o seu "charme", assim como a violência, o tráfico, o crime em si é atraente, entretem a massa... pra mim o funk é tão crítico e cultural quanto a revista Sexy, playboy, a Globo rs...

    Vamos espera o Bus comentar rsrsrsrsrs

    ResponderExcluir
  5. Pro inferno David!

    Concordo sim com vocês três...particularmente com o David e o Peres.

    Mas só queria enfatizar uma coisa, e aqui acabo percebendo que nossas divergências sobre o tema, meu caro Peres, são muito menores do que iamginamos..provavelmente achamos a mesma coisa, mas estamos falando em termos diferentes.

    Apesar de, como o David disse no comentário, não existir de fato um proposta que poderíamos chamar de libertária, e está visão está inscrita também no comentário do Peres, acho interessante o lance do rompimento estético. Esse é inegável! Como está no próprio post.

    Ou seja, ferro nas patricinhas!!

    ResponderExcluir
  6. Agora pego um ônibus que passa dentro da maior favela que divide Contagem e Betim (é mais rápido).

    Semanas atrás havia um rapaz caído no chão, morto, os carros da polícia e perícia estava lá. Do outro lado da rua, em um trailer, pessoas comiam cachorro quente, namoravam e conversavam normalmente.

    Isso é outra sensibilidade. Cada ambiência demanda padrões específicos. A suposta promiscuidade de alguns grupos (com todos as consequências decorrentes) deve ser entendida como uma resposta a questões concretas. Os rapazes constroem suas identidades não por meio do emprego, escolaridade et., mas sim através da virilidade. Não cabe as moças o papel de virgens casadoiras, isso seria simplesmente ridículo em um universo no qual seu namorado é um motoboy que pode ser esmagado por um caminhão, fuzilado pelos marginais ou pela polícia.

    O funk me lembra as festas populares das Idade Média, quando esquecia-se o futuro e perdia-se no usufruto do presente.

    ResponderExcluir