Falar sobre a filosofia anarquista, em qualquer círculo (inclusive entre simpatizantes), é algo que sempre gera polêmica – pois quando abordamos esse tema, está em jogo uma descontrução radical das formas tradicionais de como vemos e vivemos nosso mundo. Ou seja, falando de anarquismo(s), cutucamos questões sensíveis como desejos, valores, éticas, identidades e por aí vai. Daí uma certa dificuldade em trazer para o âmbito do “palpável”, as propostas e métodos de análise dos libertários. No entanto, basta um esforço, bem como disposição para mudança, que a percepção da realidade sob novos paradigmas mostra-se não só mais viável, como necessária.
Pensando nisso, decidi fazer um post a fim de trazer à discussão aqui no Blog do CISCO um dos temas mais polêmicos debatidos por anarquistas e não-anarquistas. Uma discussão tida, muitas vezes, como visionária: o Abolicionismo Penal. Garanto que (correndo o risco de ser pretensioso demais), seguindo o raciocínio, a nova imagem que terá sobre o assunto vai mudar. Não digo que, necessariamente, virá a concordar com o que está aqui, mas que, no mínimo, perceberá o assunto sob outro foco.
Como o tema é muito amplo, ao longo do texto deixarei uma série de links a fim de, a quem interessar, aprofundar determinados números ou argumentos, de modo que o post, que ficou grande, não se alongue ainda mais. Pois vamos lá, por partes:
1) A REALIDADE DO SISTEMA PENAL
É uma tendência desde a década de 70, a população carcerária mundial só cresce. No Brasil os números são alarmantes, em 1995 o país tinha cerca de 149 mil presos, em 1997, 170 mil. No entanto, pasmem, entre 2000 e 2006, essa população pulou de 210 para 400 mil presos! Esses dados são no Ministério da Justiça e lá você pode conferir outros mais detalhados. Então lanço-lhe a pergunta: a sensação de segurança e a harmonia social melhoraram?
O caso dos EUA, o mais problemático do planeta, parece roteiro de filme trash. Saquem esses dados: 1% da população está na cadeia, ou seja, 2,3 milhões de indivíduos encontram-se encarcerados; muitos americanos estão cumprindo pena por passar cheque sem fundos ou por consumo de drogas, há seis vezes mais negros do que brancos nas cadeias; o governo americano gasta cerca de 35 bilhões de dólares por ano com repressão (e esses números aumentam ano a ano desde a década de 60), de modo que nos últimos 30 anos o número de presos por envolvimento com drogas foi multiplicado por 10 – a cada quatro prisões, uma tem relação com drogas nos EUA.
Interessante lembrar que uma das causas desse ‘record’ dos americanos, está ligada justamente ao fato de ser a democracia mais aperfeiçoada do mundo. O ponto é que a justiça lá é muito politizada, na medida em que os juízes são eleitos por voto popular e têm que responder às demandas (aterrorizadas), dos seus eleitores, ou seja, “prender os negros e latinos bárbaros”
Voltando ao Brasil, aqui ainda temos um agravante: as condições das prisões. Em documento recente produzido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que fez uma via crucis pelas carceragens nacionais, temos a visão do inferno. No relatório “Situação do Sistema Prisional Brasileiro”, e em outros estudos sobre a questão, vê-se: superlotação; homens, mulheres e jovens dividindo as mesmas celas; comida estragada distribuída em sacos que são usados, posteriormente, para defecar; ausência de medidas sócio-educativas, assistência jurídica nula (há caso de penitenciárias com cerca de 2 mil presos e apenas um procurador dando respaldo), abusos de poder, tortura, mistura de acusados de homicídio, formação de quadrilha, furto etc.; tuberculosos, portadores de hanseníase, esquizofrênicos, aidéticos etc.
Não fugimos da politização da justiça por aqui também, em outros termos, é verdade. Invariavelmente! Repito, invariavelmente, o sistema penal no Brasil atinge pobres e a população mulata e de afros-descendentes. Sendo, todo nosso sistema penal, nesse sentido, nada mais do que uma máquina de gerar injustiças, violência, segregação social, desumanidade e reprodução de delinqüência – e incluo aqui as altas cúpulas do sistema. Sendo os togados os maiores delinqüentes e criminosos no ato do exercício de suas funções bem remuneradas – sendo pior quanto mais “corretos” são.
É a jurista Roberta Negrão quem define bem a situação: “Ao encarcerar o homem, encarcera-se também sua chance de renovação e mutação, inibe-se sua chance de ressocialização. De tanto ser tratado como um ‘animal enjaulado e perigoso’, como 'um ser desprezível' e ‘sem importância’, o que efetivamente se demonstra na nossa política punitiva e na realidade penitenciária, o indivíduo esquece-se de quem é e passa a acreditar em todos à sua volta, conformando-se com seu estado e situação social, agindo como se espera que o faça e desestimula-se a promover uma mudança significativa em seu ser e, em conseqüência, em seu comportamento.” E não precisa estar dentro da prisão para isso aconteça, a própria lógica punitiva e marginalizante da sociedade atua nesse sentido
Como se ainda não bastasse, todo esse processo, com o aprofundamento da globalização, do neoliberalismo e o enfraquecimento dos estados, vem se convertendo em um ótimo negócio. Milhões de dólares são movimentados todos os anos a fim de sustentar as indústrias privadas do cárcere e da segurança; os estados americanos têm suas verbas repassadas em função do números de presos etc. Como diz essa matéria da Folha On-line, para estes, pelo menos, o crime compensa.
Citando novamente Negrão“O sistema penal brasileiro vigente está recoberto de ilicitudes, ilegitimidades e vícios grotescos. Ao revés de seu objetivo primordial, nosso direito penal positivo só consegue deteriorar ainda mais a convivência em comunidade, agravando a violência existente, em uma época já marcada por tantas aberrações sociais.”
No entanto, como pude averiguar, a dita “necessidade da prisão” em sociedades complexas é vista como indispensável na tradição penalista ocidental. Por outro lado, na prática, ela não funciona, não ressocializa e não diminui a insegurança. Pense bem, é um sistema integralmente falido! Vejamos porque...
2) SISTEMA PENAL: DEFINIÇÃO E CRÍTICA
O sistema penal não se resume ao sistema prisional, esse que, na verdade, é apenas a ponta do iceberg, o exemplo mais nefasto dos infinitos elementos que fazem parte de um todo. Na verdade, como bem define verbete no site do Núcleo de Sociabilidade Libertária (nu-sol / PUC-SP), o sistema penal é composto pela “polícia, prisão, tribunal, burocracia, idéias de reformadores, mídias; carcereiros, técnicos em humanidades, identificação de periculosidades, intelectuais, seletividade, pena, punição, castigo; juízo, juiz, promotor, advogado, defensoria pública, ministério público, intimação, processo, (...) esquadrão da morte, milícias paramilitares; (...) vítimas, testemunhas, delatores, denunciadores; (...) medidas sócio-educativas, situação de risco, liberdade assistida, semi-liberdade, vulnerabilidade; medida de segurança, prevenção geral, coação, intimidação”. E completa afirmando que o “sistema penal, por qualquer lugar que você iniciar o trajeto, acabará no mesmíssimo lugar, o da punição, do encarceramento, do medo e da morte. O sistema penal é uma falácia utilitarista e um grande negócio que serve a legalidades e a ilegalismos.”
Em suma, nota-se que o que chamo aqui de sistema penal inclui toda uma cultura e uma rede de instituições e relações sociais dedicadas à punição. Elementos esses cada vez mais visíveis na atualidade. Em face da banalização, via mídia, do clima de insegurança, da prática dos ditos “crimes hediondos” e da criminalização de tudo (inclusive movimentos sociais), vê-se uma massificação da idéia de que a repressão deve aumentar: mais leis enérgicas, mais polícia, mais togados para azeitar a máquina criminal do estado, mais presídios, “tolerância zero”, suspensão das garantias, menoridade penal, pena de morte, criação de BOPE’s etc. Outros apelam para um discurso de “afrouxamento”, preocupados com as condições sócio-econômica dos criminosos e com os “direitos humanos”, exigindo maior presença do Estado e penas alternativas. No final das contas, os argumentos encontram-se, pois uma coisa só move ambos: a proteção da sociedade contra a insegurança. O sociólogo Acácio Augusto coloca: “Os discursos se unificam na constatação de que há uma escalada da violência que deve ser combatida, combinando assistência social, privada e estatal, e dura repressão, também privada e estatal”. São grandes negócios!
Essa tendência de endurecimento contra as transgressões é comum desde a década de 70. A noção de que a pena não deve ser algo cruel foi sendo deixada de lado, de modo que hoje a classe média, vendo as prisões no Brasil, afirma: “Bem feito, é isso que merecem!”. Simultaneamente, a noção de recuperação está sendo vista em segundo plano também: prega-se a justiça como castigo, é a volta da lei de Talião. E, em diferentes ritmos, esses discursos vão penetrando os poros da legalidade e da justiça formal: via criação de leis mais firmes, ou por meio de vistas grossas por parte dos togados e políticos.
Segundo análise do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o sistema encontra-se falido: “...no caso da prisão moderna, as estatísticas de reincidência sempre puseram em xeque o caráter recuperador da pena de prisão. O espaço prisional é sobretudo um espaço de estigmatização dos indivíduos que nele ingressam, de reprodução da própria delinqüência (...) e de arbítrio por parte dos agentes do Estado que, muitas vezes, empregam violência excessiva na contenção dos presos ou cedem à corrupção no interior da instituição.” Enfim, o sistema penal rompe com as garantias constitucionais básicas e, num nível superior, com os direitos fundamentais do ser humano.
O sistema está corrompido desde a sua base. A ilegitimidade percorre todo ele. O penalista holandês Louk Hulsman, ex-professor da Universidade de Rotterdam e ex-membro de vários conselhos jurídicos da ONU, fundador do abolicionismo penal moderno, falecido esse ano, coloca: “Durante um período da minha vida, vi muito claramente como as leis são produzidas: geralmente feitas por reles funcionários e emendadas precipitadamente e por compromissos políticos; não têm absolutamente nada de democráticas e, dificilmente, são fruto de uma coerência ideológica. Pior ainda: são editadas na ignorância da diversidade de situações sobre as quais vão influir (...) as leis e as estruturas teoricamente destinadas a proteger o cidadão podem, em determinadas circunstâncias, se voltar contra ele. Ou seja, descobri a falsidade do discurso oficial que, de um lado, pretende ser o Estado necessário à sobrevivência das pessoas e, de outro lado, o legitima, revestindo-o da representatividade popular.” (A entrevista completa está disponível nas Revista Verve)
Em outra entrevista, no Brasil, Louk complementa o argumento: “O sistema funciona de forma irracional e tem uma lógica própria, que não em nada a ver com a vida real das pessoas. Não costuma levar em conta, por exemplo, a perspectiva da vítima. (...) É preciso repensar o sistema penal do ponto de vista das vítimas. (...) Os corpos que integram o sistema – Polícia, Ministério Público, Judiciário, tudo isso – trabalham isoladamente, em estruturas independentes e voltadas para si mesmas. Não trabalham em conjunto, harmoniosamente. Cada um deles desenvolve critérios de ação, ideologias e culturas próprias. Seu objetivo principal não é resolver os problemas externos, mas sim os internos. Estão mais preocupados com eles mesmos, com sua própria sobrevivência.”.
Em seguida, respondendo à pergunta “E quanto aos crimes violentos?”, Louk coloca: “Até hoje ninguém conseguiu provar que o sistema penal protege as pessoas da violência. Também ninguém provou que ele é o único instrumento capaz de garantir tal proteção. Ao contrário, qualquer pessoa pode constatar que o sistema penal não consegue impedir que ocorram homicídios, roubos, seqüestros, estupros. Tenho certeza que, se o sistema penal fosse abolido em algum país, não haveria aumento da violência.”. Para endossar esse argumento, basta lembrar que a taxa de homicídios, em TODOS os casos, nos estados que adotam a pena de morte nos EUA, são maiores.
Alguns de vocês diriam: “Isso é utopia!”. Mas tenham mais calma em seus julgamentos. O que acham que leva uma pessoa que vive numa favela a entrar no crime organizado ou não entrar. O medo da punição? Muito pouco! É uma série de complexas relações que explica isso. Contexto esse deixado de lado pelo sistema penal, ao não considerá-lo quando do julgamento. Por meio da frieza burocrática de uma lei, descolada da situação onde há um problema, portanto não considerando as diferenças locais a fim de imprimir a igualdade na sua aplicação, se faz o julgamento de uma ação. Não é a lei, instrumento técnico que tem que se encaixar na situação, mas o contrário, o ser humano, na sua fluidez e dinâmica humanidade, é que tem que ser encaixado numa estrutura legal distante dele e feita, como foi dito, sem a mínima base de legitimidade real.
Essa impessoalidade, usando aqui os argumento de Negrão, implica em julgamentos errados, sensação de revolta e injustiça, estimula, além da reincidência, a ‘majoração’ do crime, que seria o estímulo de parentes, amigos e companheiros a realizarem atitudes criminosas.
Em outras palavras, utópico é o Direito Penal Tradicional, que se fundamenta num consenso que não existe. Ou seja, devemos ter a sensibilidade de não misturarmos, como faz esse Sistema, os conflitos sociais cotidianos (que existem e devem ser apreciados), com um sistema de penalização injusto, ilegítimo, não funcional, falido e, como mostrarei na continuação desse texto, inconstitucional e desumano.
Na continuação desse post, veremos o que é o Abolicionismo Penal e como ele se faz na prática.
Saúde e Anarquia!
Pensando nisso, decidi fazer um post a fim de trazer à discussão aqui no Blog do CISCO um dos temas mais polêmicos debatidos por anarquistas e não-anarquistas. Uma discussão tida, muitas vezes, como visionária: o Abolicionismo Penal. Garanto que (correndo o risco de ser pretensioso demais), seguindo o raciocínio, a nova imagem que terá sobre o assunto vai mudar. Não digo que, necessariamente, virá a concordar com o que está aqui, mas que, no mínimo, perceberá o assunto sob outro foco.
Como o tema é muito amplo, ao longo do texto deixarei uma série de links a fim de, a quem interessar, aprofundar determinados números ou argumentos, de modo que o post, que ficou grande, não se alongue ainda mais. Pois vamos lá, por partes:
1) A REALIDADE DO SISTEMA PENAL
É uma tendência desde a década de 70, a população carcerária mundial só cresce. No Brasil os números são alarmantes, em 1995 o país tinha cerca de 149 mil presos, em 1997, 170 mil. No entanto, pasmem, entre 2000 e 2006, essa população pulou de 210 para 400 mil presos! Esses dados são no Ministério da Justiça e lá você pode conferir outros mais detalhados. Então lanço-lhe a pergunta: a sensação de segurança e a harmonia social melhoraram?
O caso dos EUA, o mais problemático do planeta, parece roteiro de filme trash. Saquem esses dados: 1% da população está na cadeia, ou seja, 2,3 milhões de indivíduos encontram-se encarcerados; muitos americanos estão cumprindo pena por passar cheque sem fundos ou por consumo de drogas, há seis vezes mais negros do que brancos nas cadeias; o governo americano gasta cerca de 35 bilhões de dólares por ano com repressão (e esses números aumentam ano a ano desde a década de 60), de modo que nos últimos 30 anos o número de presos por envolvimento com drogas foi multiplicado por 10 – a cada quatro prisões, uma tem relação com drogas nos EUA.
Interessante lembrar que uma das causas desse ‘record’ dos americanos, está ligada justamente ao fato de ser a democracia mais aperfeiçoada do mundo. O ponto é que a justiça lá é muito politizada, na medida em que os juízes são eleitos por voto popular e têm que responder às demandas (aterrorizadas), dos seus eleitores, ou seja, “prender os negros e latinos bárbaros”
Voltando ao Brasil, aqui ainda temos um agravante: as condições das prisões. Em documento recente produzido pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que fez uma via crucis pelas carceragens nacionais, temos a visão do inferno. No relatório “Situação do Sistema Prisional Brasileiro”, e em outros estudos sobre a questão, vê-se: superlotação; homens, mulheres e jovens dividindo as mesmas celas; comida estragada distribuída em sacos que são usados, posteriormente, para defecar; ausência de medidas sócio-educativas, assistência jurídica nula (há caso de penitenciárias com cerca de 2 mil presos e apenas um procurador dando respaldo), abusos de poder, tortura, mistura de acusados de homicídio, formação de quadrilha, furto etc.; tuberculosos, portadores de hanseníase, esquizofrênicos, aidéticos etc.
Não fugimos da politização da justiça por aqui também, em outros termos, é verdade. Invariavelmente! Repito, invariavelmente, o sistema penal no Brasil atinge pobres e a população mulata e de afros-descendentes. Sendo, todo nosso sistema penal, nesse sentido, nada mais do que uma máquina de gerar injustiças, violência, segregação social, desumanidade e reprodução de delinqüência – e incluo aqui as altas cúpulas do sistema. Sendo os togados os maiores delinqüentes e criminosos no ato do exercício de suas funções bem remuneradas – sendo pior quanto mais “corretos” são.
É a jurista Roberta Negrão quem define bem a situação: “Ao encarcerar o homem, encarcera-se também sua chance de renovação e mutação, inibe-se sua chance de ressocialização. De tanto ser tratado como um ‘animal enjaulado e perigoso’, como 'um ser desprezível' e ‘sem importância’, o que efetivamente se demonstra na nossa política punitiva e na realidade penitenciária, o indivíduo esquece-se de quem é e passa a acreditar em todos à sua volta, conformando-se com seu estado e situação social, agindo como se espera que o faça e desestimula-se a promover uma mudança significativa em seu ser e, em conseqüência, em seu comportamento.” E não precisa estar dentro da prisão para isso aconteça, a própria lógica punitiva e marginalizante da sociedade atua nesse sentido
Como se ainda não bastasse, todo esse processo, com o aprofundamento da globalização, do neoliberalismo e o enfraquecimento dos estados, vem se convertendo em um ótimo negócio. Milhões de dólares são movimentados todos os anos a fim de sustentar as indústrias privadas do cárcere e da segurança; os estados americanos têm suas verbas repassadas em função do números de presos etc. Como diz essa matéria da Folha On-line, para estes, pelo menos, o crime compensa.
Citando novamente Negrão“O sistema penal brasileiro vigente está recoberto de ilicitudes, ilegitimidades e vícios grotescos. Ao revés de seu objetivo primordial, nosso direito penal positivo só consegue deteriorar ainda mais a convivência em comunidade, agravando a violência existente, em uma época já marcada por tantas aberrações sociais.”
No entanto, como pude averiguar, a dita “necessidade da prisão” em sociedades complexas é vista como indispensável na tradição penalista ocidental. Por outro lado, na prática, ela não funciona, não ressocializa e não diminui a insegurança. Pense bem, é um sistema integralmente falido! Vejamos porque...
2) SISTEMA PENAL: DEFINIÇÃO E CRÍTICA
O sistema penal não se resume ao sistema prisional, esse que, na verdade, é apenas a ponta do iceberg, o exemplo mais nefasto dos infinitos elementos que fazem parte de um todo. Na verdade, como bem define verbete no site do Núcleo de Sociabilidade Libertária (nu-sol / PUC-SP), o sistema penal é composto pela “polícia, prisão, tribunal, burocracia, idéias de reformadores, mídias; carcereiros, técnicos em humanidades, identificação de periculosidades, intelectuais, seletividade, pena, punição, castigo; juízo, juiz, promotor, advogado, defensoria pública, ministério público, intimação, processo, (...) esquadrão da morte, milícias paramilitares; (...) vítimas, testemunhas, delatores, denunciadores; (...) medidas sócio-educativas, situação de risco, liberdade assistida, semi-liberdade, vulnerabilidade; medida de segurança, prevenção geral, coação, intimidação”. E completa afirmando que o “sistema penal, por qualquer lugar que você iniciar o trajeto, acabará no mesmíssimo lugar, o da punição, do encarceramento, do medo e da morte. O sistema penal é uma falácia utilitarista e um grande negócio que serve a legalidades e a ilegalismos.”
Em suma, nota-se que o que chamo aqui de sistema penal inclui toda uma cultura e uma rede de instituições e relações sociais dedicadas à punição. Elementos esses cada vez mais visíveis na atualidade. Em face da banalização, via mídia, do clima de insegurança, da prática dos ditos “crimes hediondos” e da criminalização de tudo (inclusive movimentos sociais), vê-se uma massificação da idéia de que a repressão deve aumentar: mais leis enérgicas, mais polícia, mais togados para azeitar a máquina criminal do estado, mais presídios, “tolerância zero”, suspensão das garantias, menoridade penal, pena de morte, criação de BOPE’s etc. Outros apelam para um discurso de “afrouxamento”, preocupados com as condições sócio-econômica dos criminosos e com os “direitos humanos”, exigindo maior presença do Estado e penas alternativas. No final das contas, os argumentos encontram-se, pois uma coisa só move ambos: a proteção da sociedade contra a insegurança. O sociólogo Acácio Augusto coloca: “Os discursos se unificam na constatação de que há uma escalada da violência que deve ser combatida, combinando assistência social, privada e estatal, e dura repressão, também privada e estatal”. São grandes negócios!
Essa tendência de endurecimento contra as transgressões é comum desde a década de 70. A noção de que a pena não deve ser algo cruel foi sendo deixada de lado, de modo que hoje a classe média, vendo as prisões no Brasil, afirma: “Bem feito, é isso que merecem!”. Simultaneamente, a noção de recuperação está sendo vista em segundo plano também: prega-se a justiça como castigo, é a volta da lei de Talião. E, em diferentes ritmos, esses discursos vão penetrando os poros da legalidade e da justiça formal: via criação de leis mais firmes, ou por meio de vistas grossas por parte dos togados e políticos.
Segundo análise do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), o sistema encontra-se falido: “...no caso da prisão moderna, as estatísticas de reincidência sempre puseram em xeque o caráter recuperador da pena de prisão. O espaço prisional é sobretudo um espaço de estigmatização dos indivíduos que nele ingressam, de reprodução da própria delinqüência (...) e de arbítrio por parte dos agentes do Estado que, muitas vezes, empregam violência excessiva na contenção dos presos ou cedem à corrupção no interior da instituição.” Enfim, o sistema penal rompe com as garantias constitucionais básicas e, num nível superior, com os direitos fundamentais do ser humano.
O sistema está corrompido desde a sua base. A ilegitimidade percorre todo ele. O penalista holandês Louk Hulsman, ex-professor da Universidade de Rotterdam e ex-membro de vários conselhos jurídicos da ONU, fundador do abolicionismo penal moderno, falecido esse ano, coloca: “Durante um período da minha vida, vi muito claramente como as leis são produzidas: geralmente feitas por reles funcionários e emendadas precipitadamente e por compromissos políticos; não têm absolutamente nada de democráticas e, dificilmente, são fruto de uma coerência ideológica. Pior ainda: são editadas na ignorância da diversidade de situações sobre as quais vão influir (...) as leis e as estruturas teoricamente destinadas a proteger o cidadão podem, em determinadas circunstâncias, se voltar contra ele. Ou seja, descobri a falsidade do discurso oficial que, de um lado, pretende ser o Estado necessário à sobrevivência das pessoas e, de outro lado, o legitima, revestindo-o da representatividade popular.” (A entrevista completa está disponível nas Revista Verve)
Em outra entrevista, no Brasil, Louk complementa o argumento: “O sistema funciona de forma irracional e tem uma lógica própria, que não em nada a ver com a vida real das pessoas. Não costuma levar em conta, por exemplo, a perspectiva da vítima. (...) É preciso repensar o sistema penal do ponto de vista das vítimas. (...) Os corpos que integram o sistema – Polícia, Ministério Público, Judiciário, tudo isso – trabalham isoladamente, em estruturas independentes e voltadas para si mesmas. Não trabalham em conjunto, harmoniosamente. Cada um deles desenvolve critérios de ação, ideologias e culturas próprias. Seu objetivo principal não é resolver os problemas externos, mas sim os internos. Estão mais preocupados com eles mesmos, com sua própria sobrevivência.”.
Em seguida, respondendo à pergunta “E quanto aos crimes violentos?”, Louk coloca: “Até hoje ninguém conseguiu provar que o sistema penal protege as pessoas da violência. Também ninguém provou que ele é o único instrumento capaz de garantir tal proteção. Ao contrário, qualquer pessoa pode constatar que o sistema penal não consegue impedir que ocorram homicídios, roubos, seqüestros, estupros. Tenho certeza que, se o sistema penal fosse abolido em algum país, não haveria aumento da violência.”. Para endossar esse argumento, basta lembrar que a taxa de homicídios, em TODOS os casos, nos estados que adotam a pena de morte nos EUA, são maiores.
Alguns de vocês diriam: “Isso é utopia!”. Mas tenham mais calma em seus julgamentos. O que acham que leva uma pessoa que vive numa favela a entrar no crime organizado ou não entrar. O medo da punição? Muito pouco! É uma série de complexas relações que explica isso. Contexto esse deixado de lado pelo sistema penal, ao não considerá-lo quando do julgamento. Por meio da frieza burocrática de uma lei, descolada da situação onde há um problema, portanto não considerando as diferenças locais a fim de imprimir a igualdade na sua aplicação, se faz o julgamento de uma ação. Não é a lei, instrumento técnico que tem que se encaixar na situação, mas o contrário, o ser humano, na sua fluidez e dinâmica humanidade, é que tem que ser encaixado numa estrutura legal distante dele e feita, como foi dito, sem a mínima base de legitimidade real.
Essa impessoalidade, usando aqui os argumento de Negrão, implica em julgamentos errados, sensação de revolta e injustiça, estimula, além da reincidência, a ‘majoração’ do crime, que seria o estímulo de parentes, amigos e companheiros a realizarem atitudes criminosas.
Em outras palavras, utópico é o Direito Penal Tradicional, que se fundamenta num consenso que não existe. Ou seja, devemos ter a sensibilidade de não misturarmos, como faz esse Sistema, os conflitos sociais cotidianos (que existem e devem ser apreciados), com um sistema de penalização injusto, ilegítimo, não funcional, falido e, como mostrarei na continuação desse texto, inconstitucional e desumano.
Na continuação desse post, veremos o que é o Abolicionismo Penal e como ele se faz na prática.
Saúde e Anarquia!
Realmente a situação é alarmante, nem sei o que comentar... concordo com tudo que foi colocado... não é dificil perceber que o Sistema todo está falido/corrompido!
ResponderExcluirEsse tema é complicadíssimo... Não pela dificuldade em se apontar os problemas... que são incontáveis, mas justamente pela quanse impossibilidade de se enxergar qualquer solução.
ResponderExcluirÉ uma sobreposição de nós do sistema que não acaba mais.
Pra começarmos a pensar é só dizer que é uma questão que envolve justiça, polícia, estado e facções criminosas... junte-se a isso pobreza, ineficiência do estado e do capital, crise moral da sociedade...
É muita merda sendo jogada no ventilador...
Aguardo a continuidade da postagem para aprofundarmos o debate!
É, esse tema é muito complexo mesmo. Como disseram vocês dois, não sabemos nem como abordar a questão. Pelo fato se envolver muita coisa. Desde a própria noção de democarcia como conhecemos até o problema do "criminoso", ou do "transfuga", que todas as sociedaded tem que lidar - democráticas ou não. E o interessante que, nenhuma outra prendeu tanta gente, aboluta e relativamente, como as democracias modernas. É um contrasenso em termos. Daqui a pouco coloco a continuação do post, aí espero que as nossas críticas comecem a visualisar caminhos possíveis.
ResponderExcluirEstou aguardando comentários, também, de uns colegas da área do direito e da polícia...será interessante a apreciação deles sobre a questão.
Valeu!