sexta-feira, 29 de maio de 2009

Dossiê: Abolicionismo Penal (Parte 02)



3) DIREITO PENAL SIMBÓLICO E DIREITO PENAL MÍNIMO

Está lá na Constituição Federal de 1988:

“Art.5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade (...)”

Sabemos que isso nunca foi levado a sério aqui no Brasil. Na verdade já, mas só para algumas parcelas da população. Em se tratando de Brasil isso é normal, pois aqui “uns são mais iguais do que outros”. Mas o ponto é que quero avaliar esse importante artigo de nossa Carta Magna face a questão do Sistema Penal e do Abolicionismo. Então vamos aos fatos:

As leis penais são minimamente aplicadas em grande parte do mundo – e mesmo assim temos milhões nas cadeias. Faz parte de sua lógica um forte caráter seletivo, dando origem ao que os juristas chamam de “cifra negra” que, tecnicamente, consiste, segundo Negrão: “(...) em todo o montante de condutas criminalizáveis que deixam de ingressar no sistema penal estatuído.”. Em outros termos, isso significa que existem ‘zilhões’ de ocorrências, teoricamente, enquadráveis nos códigos penais mundo afora mas que, por incapacidade funcional, as máquinas estatais acabam apreciando uma porcentagem mínima desse quadro. A única estatística que tenho sobre isso é da realidade holandesa, onde apenas 2% das ocorrências enquadráveis no código penal são apreciadas pela justiça! Imaginem os números no Brasil então!!

Não precisava continuar argumentando para mostrar como o 5º artigo é tido pelo Sistema Penal como um palhaço no picadeiro mas, dado o meu apreço masoquista,vamos continuar:

Para Louk Hulsman, o fato de convivermos com esse tipo de conduta converte-se numa bizarrice legal e humana, pois “Como achar normal um sistema que só intervém na vida social de maneira tão marginal, estatisticamente tão desprezível? Todos os princípios e valores sobre os quais tal sistema se apóia – a igualdade dos cidadãos, a segurança, o direito à justiça, etc – são radicalmente deturpados , na medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos registrados. Oras, se todos ‘homens são iguais’, como determina nossa Carta Magna, então poderíamos concluir que todos os que não são atingidos pela jurisdição do sistema penal na solução de seus problemas, não são tratados de forma igual aos homens tutelados pela lei penal, portanto ‘não são seres humanos’? Ou então, estariam renegados à condição de 2ª classe e cidadãos?”

É a isso que damos o nome de Direito Penal Simbólico, ou seja, um sistema que, a princípio, não atinge a todos, procurando ser efetivo por meio da “lógica do exemplo” (ou por uma pedagogia do medo, no bom português), e que acaba, por falta de opção, travestindo-se de caráter extremamente seletivo, segregacionista e excludente – digno da justiça tal como praticada na, agora nem tão longínqua, Idade Média.

Pior! Essa valorização da dimensão simbólica na aplicação das leis penais, que, como já vimos, simplesmente não funciona, vem sendo instrumentalizada e ideologicamente aplicada; estando mascarada, obviamente, por uma falsa camada de virtudes democráticas, transparência do sistema, justiça para todos e outras quinquilharias.

O desembargador Alberto Silva Franco mostra bem isso: “O recurso à função simbólica tem tido, nos últimos tempos, uma enorme incidência, (...) como uma resposta às crises econômicas, políticas ou sociais que assoberbam as sociedades modernas e são geradoras de medo ou de insegurança. Criam-se, em conseqüência, novos tipos penais. Agravam-se, desnecessariamente, as penalidades já existentes. Encurtam-se garantias processuais conquistadas após prolongadas lutas. Volta-se o mecanismo penal controlador contra determinados grupos de delinqüentes. O objetivo único é o de aquietar a sociedade, em geral, e certos segmentos sociais, em particular. O resultado é, no entanto, pífio. A curto prazo, não provoca nenhuma conseqüência de relevo. A maior contundência do sistema penal implantado não produz o efeito pretendido e não restabelece o sentimento de segurança individual ou coletivo.”

Em outros termos, o sistema penal acaba voltando-se para um processo de criminalização dos excluídos, da pobreza, dos marginais e marginalizáveis, dos passiveis de encarceramento. Isso é fato inquestionável, basta analisar a população carcerária de qualquer país no mundo

Pelo lado da funcionalidade, também, o Sistema Penal é motivo de piada, pois não só homicídios (por parte do próprio sistema, por exemplo), tráfico, estupros, seqüestros etc. são cometidos com considerável freqüência, como estes vêm aumentado à revelia da radicalização pelos quais as leis penais vêm passando. Em outros termos, a intervenção do estado é mais do que irrelevante, ela provoca mais violência. Segundo relatório desse ano da Anistia Internacional, o estado de São Paulo conseguiu um feito inacreditável: a taxa de homicídios diminuiu, mas o número de pessoas mortas pelas polícias aumentou!!

Por fim, ainda dentro do argumento jurídico, vemos que a simples existência do Direito Penal consiste num franco atentado contra os fundamentos das garantias constitucionais mínimas de um estado democrático de direito. Louk ainda critica o fato de que, mesmo em vista da derrocada dessa lógica, aos alunos de Direito ensina-se “a hierarquia das normas. Há decretos, leis, a constituição, tratados, os direitos do homem. Nessa hierarquia, os direitos do homem estão no patamar mais alto.”; e conclui que “O sistema penal é claramente, em muitos aspectos, contrário aos direitos do homem, sobretudo a prisão.”. Até porque, a própria lógica da seletividade, produz, simultaneamente, legalidades e ilegalidades.

Indo contra essa tendência falida do Direito Penal Simbólico, surge o chamado Direito Penal Mínimo, esse já bastante influenciado pela filosofia do Abolicionismo Penal dos anos 70 mas, segundo seus defensores, mais calcados no mundo real e nas possibilidades viáveis de reforma do sistema em face do contexto atual. Contra uma lógica populista e de forte conotação vingativa e emocional do ‘Simbolismo’ penal, os ‘Mínimos’ pregam uma despenalização geral. Desse modo, se outras forma de sanção e controle de ações criminalizáveis forem possíveis, opta-se pela desconstrução da noção desse ato como uma pena, transferindo-o da alçada do direito penal para o direito civil. Questões como a ampliação dos direitos civis: aborto, eutanásia, casamento gay, descriminalização e/ou legalização das drogas, formalização dos trabalhadores do sexo e etc. encaixam-se nesse movimento.

Os ‘Mínimos’ não descartam a utilização do Sistema Penal, apesar de o perceberem com algo ilegítimo, prezando, no entanto, por uma humanização radical do mesmo, de modo que penas alternativas, reeducação (não como se dá no caso chinês, por favor), entre outras flexibilizações assumam a pauta principal. Por fim, segundo essa lógica, a intervenção do estado e a adoção de normas penais mais “ríspidas”, só devem ser usadas em último caso.

4) O ABOLICIONISMO PENAL

A fim de apresentar rapidamente em que consiste a proposta dos abolicionistas, creio ser necessário, tal como fez Negrão, pontuar o principal fundamento onde se baseia o argumento que vê como ilegítima a intervenção do estado nas questões que por ora vimos discutindo: a questão da culpabilidade.

O Código Penal Brasileiro afirma:

“Art.59: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.”

Dessa forma, conclui-se que a interferência do Estado na vida do indivíduo só se torna legítima na medida em que este tem a sua culpabilidade provada (para os penalistas). Para tal, o Estado precisa ter ciência acerca do uso do livre-arbítrio por parte do “criminoso”, a fim de julgá-lo culpado, se fez a escolha deliberada em praticar o tal ato, ou inocentá-lo, caso o tal crime fosse a ele imputado por forças externas à sua vontade.

Mas é justamente nessa filigrana da metodologia penal de avaliação do uso do livre-arbítrio que a coisa começa a se complicar. Segundo o jurista Lycurgo de Castro Santos: “(...) não há como determinar se o indivíduo, nas circunstâncias em que atuou, poderia atuar de forma contrária”. Negrão complementa o argumento: “Como estabelecer então se houve no ato delituoso a culpabilidade concreta? Como estabelecer se naquele momento o indivíduo estava exercendo seu livre arbítrio (...)? Nossa sociedade, por seus meios quase que imperceptíveis, molda de forma brusca a psique dos indivíduos. Não podemos avaliar com nitidez a culpa pelo ato delituoso. É impossível ao Estado adentrar aos mais remotos pensamentos e sentimentos do ser humano e descobrir a culpa neles. Dessa forma concluímos que, se a legitimidade de punir, de interferir na vida do indivíduo, baseia-se na culpa do mesmo, e que não podemos avaliar a culpa, sob pena de cometer erros hediondos, é que entendem os abolicionista que o Estado não possui razão ou justificação para sua malfadada tarefa de julgar um indivíduo e trancafiá-lo em uma prisão. Não possui o Estado a legitimidade para reprovar o homem.”

Se ainda assim, você leitor, crê ser possível a definição exata da culpabilidade, leia esse texto de sobre a relação entre justiça, sistema carcerário, crime organizado e favelas no Rio de Janeiro, e tente encontrar alguma possibilidade de se apontar a ‘culpa’ num contexto de miséria, esquecimento por parte dos poderes públicos, segregação social extrema e a lógica reinante do Direito Penal Simbólico. (Não vou me aprofundar nessa questão da culpabilidade a fim de não alongar por demais o post).

Segundo verbete do Nu-Sol, o Abolicionismo Penal: “...é um estilo de vida livre. Contesta a ontologia do crime, mostrando que este é uma construção histórica por parte da sociedade que não sabe lidar com o insuportável. O abolicionismo penal é também um movimento acadêmico e social instituinte de novas linguagens e práticas não criminais na solução de uma situação-problema. Informa e combate as seletividades do sistema penal que recaem regularmente sobre aqueles vistos como perigosos, suspeitos, anormais, sediciosos, indecentes, libidinosos, subversivos.”

Dessa forma, a anti-doutrina do Abolicionismo, que na verdade consiste numa aplicação da metodologia libertária à questão das contendas humanas, prioriza a desconstrução radical de uma lógica disciplinar, desumana, não funcional (não se esqueçam disso) e portadora de um fim nela mesma – pois ao Sistema Penal não interessa a condição dos homens que dele fazem parte, mas tão somente a concentração e reprodução de poderes nas mãos de alguns homens que o constituem. É um movimento que tem origem com anarquistas como Willian Godwin, no XVIII, com a sua obra “Da Justiça Política”, e Max Stirner, no XIX, através de “O Único e sua Propriedade”. Ganha novo ímpeto com Louk Hulsman a partir de 1968 na Holanda, ele influenciaria, toda uma geração de juristas, nos campos acadêmico e do poder público, bem como uma legião de movimentos sociais (inclusive no âmbito dos movimentos anti-manicomiais), através de uma crítica que procurava desnudar as falácias da burocracia e o perfil essencialmente desagregador e negativo do sistema penal.

Basicamente, esses são os princípios do Abolicionismo Penal, de forma que na continuação (e última parte) desse post, discutiremos o necessário deslocamento ético para que tenhamos, de fato, um debate sério e produtivo sobre a questão da violência nas sociedades modernas, bem como as sugestões dos abolicionistas para lidar, no cotidiano, com o chamado “crime”.

Até! Saúde e Anarquia pra todos!

Um comentário:

  1. Realmente é impressionante como o sistema penal tem gerado uma série de problemas sociais... mais graves, até, do que muitos, eu diria a maioria, dos "crimes" que ele procura combater.

    Os índices de violência decorrentes da aplicação das sanções e da falta de condições para sua execução são consideráveis.

    Isso realmente nos leva a questionar até que ponto a manutenção desse sistema gera "segurança" ou significa um combate à violência?

    Será que uma revisão do conceito de crime e de sanção levaria a tanta violência? Não seria uma saída para isso?

    A partir do momento em que as sanções são diminuídas, as responsabilidades individuais e coletivas tendem a emergir. A garantia da ordem social passa a ser vista de maneira positiva e não mais negativa. No sentido de faça o que é bom, faça o que é melhor, faça o que é justo, em vez de "não faça isso", "não faça aquilo"...

    Sem sanções há um reforço da responbilidade moral de cada um...

    A questão é de como garantir esse reforço moral, essa percepção das responsabilidades...

    Pois, caso contrário, essa negação da punição pode falhar.

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