
Quando ele se interessou por aquela matéria morta foi um momento grandioso. O corpo inerte sobre a mesa fria – com seus lábios cinzentos, seus músculos retesos e o odor cadavérico espalhado pelo ambiente – ao invés de lhe despertar um sentimento de comoção ou mesmo o asco, simplesmente o convenceu ainda mais a realizar seu intento. Avidamente, e com a mão um pouco trêmula, ele pegou a lâmina e com um corte longitudinal rasgou o ventre do defunto.
Iniciava-se uma dissecação, com aquele ato revolucionário as almas eram expulsas dos corpos humanos, tendo que se refugiar na imaginação e nas superstições dos obscurantistas. Entender o corpo humano como um fenômeno da natureza, sujeito às demais leis que regem o universo, representou um avanço na compreensão do mundo. O compromisso do homem com o logos e a vontade de escarafunchar cada segmento do real trouxe a ciência moderna, supostamente comprometida com o bem viver, plenamente otimista com a intervenção antrópica no ambiente.
Não mais as explicações religiosas, caberia agora um estudo sistemático, o nascimento da anatomia e de uma fisiologia mais abalizada. As forças da reação (sobretudo aquelas que seguiam o homem do chapéu pontudo) sentiram-se incomodadas com essa formidável ousadia, mas ao final se resignaram com tal heresia racionalista.
Passado tantos séculos depois somos obrigados, e não com pouco receio de se alinhar (mesmo que involuntariamente) aos reaças, a questionar algumas dessas ousadias científicas. Longe de querer tomar um posicionamento definitivo, vale deixar uma indagação, na verdade mais um incômodo com algumas práticas dessa ciência moderna.
No plano ético, há poucos embargos para a dissecação, ela já se consolidou nos cursos de ciências biológicas e a própria autópsia é sua derivada direta. Mas e quanto à vivissecção, isto é, o ato de dissecar um animal vivo, geralmente infligindo a dor ou um dano irreversível, trata-se de algo moralmente aceitável?
O argumento corrente defende a vivissecção como um exercício fundamental para a compreensão da fisiologia e do funcionamento dos órgãos (o metabolismo) enquanto vivos. Seria fundamental para o teste de procedimentos cirúrgicos e dos efeitos de remédios e drogas variadas, o que em última instância traria uma melhor qualidade de vida para o homem.
Há um risco muito grande de incorremos em um especismo, acreditando que os demais seres vivos podem e devem sofrer em benefícios do ser humano. Assim, o paradigma antropocêntrico seria a camuflagem de nossa arrogância e desrespeito pelo bioma. Conhecemos os efeitos da ação antrópica na natureza, a sanha racionalista trouxe uma conduta insana, na qual o homem se sente no direito de destruir as próprias condições que o permitem viver.
A vivissecção é o ponto extremo: crânios de cachorros abertos, enquanto salivam assustados e esgotados. Macacos presos em uma fria mesa metálica, com algumas dezenas de agulhas perfurando pontos sensíveis. Tudo em nome da ciência. Da ciência e do lucro das empresas cosméticas e farmacêuticas, as principais defensoras da vivissecção, auxiliadas teórica e ideologicamente por arrogantes catedráticos (os bruxos da história natural) moralmente aptos a infligir dor nas demais formas de vida que não levem em seu material genético os 46 cromossomos.
Portanto, é muito fácil criticar a vivissecção e descartá-la como uma metodologia científica legítima, mas quando olhamos à direita vemos que aqueles que lá estão nos aplaudem quando tomamos tal posição. Cabe, portanto, cautela, pois nossas bandeiras nunca serão as mesmas e se elas coincidem não é um bom presságio. Ao renegarmos essa prática podemos novamente conferir aos seres vivos uma áurea espiritual, com uma idealização da natureza, tratando-a até como uma divindade. Não sou um eco-fascista, não quero me arvorar à posição de defensor das samambaias ou dos ratos brancos, ainda tenho fé no logos.
Os seres vivos experimentam uma constante rotina de crueldade, será que a vivissecção é mais imoral do que a teia da aranha? Sei que aqui a argumentação se torna boba, pois o homem em sua racionalidade trouxe para si a ética, mas então retomo a provocação questionando se podemos estender o universo ético aos seres não racionais. Talvez o conceito de dor seja muito subjetivo e humano para ser aplicado a outras espécies, mas tal idéia também se revela frágil e cínica.
Será que todo conhecimento é válido? Será que o saber que brota da dor e do sofrimento de outros animais é legítimo e deve ser aceito? Responder não a essas duas perguntas traz uma série de implicações, que os vegetarianos bem sabem...
Talvez uma nova sensibilidade esteja em formação nesse exato momento, menos pretensiosa; parceira do ecossistema e disposta a conciliar a curiosidade humana com o respeito pela vida. Mas que essa nova humildade não represente o retrocesso e o fanatismo que imperou em épocas passadas, quando o único material para se extrair a verdade era um livro com páginas amareladas e idéias um tanto indigestas, que fazia da história natural algo tão edificante quanto a fábula da Arca de Noé.
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