quinta-feira, 23 de abril de 2009

Antropocentrismo ou especismo?


Quando ele se interessou por aquela matéria morta foi um momento grandioso. O corpo inerte sobre a mesa fria – com seus lábios cinzentos, seus músculos retesos e o odor cadavérico espalhado pelo ambiente – ao invés de lhe despertar um sentimento de comoção ou mesmo o asco, simplesmente o convenceu ainda mais a realizar seu intento. Avidamente, e com a mão um pouco trêmula, ele pegou a lâmina e com um corte longitudinal rasgou o ventre do defunto.

Iniciava-se uma dissecação, com aquele ato revolucionário as almas eram expulsas dos corpos humanos, tendo que se refugiar na imaginação e nas superstições dos obscurantistas. Entender o corpo humano como um fenômeno da natureza, sujeito às demais leis que regem o universo, representou um avanço na compreensão do mundo. O compromisso do homem com o logos e a vontade de escarafunchar cada segmento do real trouxe a ciência moderna, supostamente comprometida com o bem viver, plenamente otimista com a intervenção antrópica no ambiente.

Não mais as explicações religiosas, caberia agora um estudo sistemático, o nascimento da anatomia e de uma fisiologia mais abalizada. As forças da reação (sobretudo aquelas que seguiam o homem do chapéu pontudo) sentiram-se incomodadas com essa formidável ousadia, mas ao final se resignaram com tal heresia racionalista.

Passado tantos séculos depois somos obrigados, e não com pouco receio de se alinhar (mesmo que involuntariamente) aos reaças, a questionar algumas dessas ousadias científicas. Longe de querer tomar um posicionamento definitivo, vale deixar uma indagação, na verdade mais um incômodo com algumas práticas dessa ciência moderna.

No plano ético, há poucos embargos para a dissecação, ela já se consolidou nos cursos de ciências biológicas e a própria autópsia é sua derivada direta. Mas e quanto à vivissecção, isto é, o ato de dissecar um animal vivo, geralmente infligindo a dor ou um dano irreversível, trata-se de algo moralmente aceitável?

O argumento corrente defende a vivissecção como um exercício fundamental para a compreensão da fisiologia e do funcionamento dos órgãos (o metabolismo) enquanto vivos. Seria fundamental para o teste de procedimentos cirúrgicos e dos efeitos de remédios e drogas variadas, o que em última instância traria uma melhor qualidade de vida para o homem.

Há um risco muito grande de incorremos em um especismo, acreditando que os demais seres vivos podem e devem sofrer em benefícios do ser humano. Assim, o paradigma antropocêntrico seria a camuflagem de nossa arrogância e desrespeito pelo bioma. Conhecemos os efeitos da ação antrópica na natureza, a sanha racionalista trouxe uma conduta insana, na qual o homem se sente no direito de destruir as próprias condições que o permitem viver.

A vivissecção é o ponto extremo: crânios de cachorros abertos, enquanto salivam assustados e esgotados. Macacos presos em uma fria mesa metálica, com algumas dezenas de agulhas perfurando pontos sensíveis. Tudo em nome da ciência. Da ciência e do lucro das empresas cosméticas e farmacêuticas, as principais defensoras da vivissecção, auxiliadas teórica e ideologicamente por arrogantes catedráticos (os bruxos da história natural) moralmente aptos a infligir dor nas demais formas de vida que não levem em seu material genético os 46 cromossomos.

Portanto, é muito fácil criticar a vivissecção e descartá-la como uma metodologia científica legítima, mas quando olhamos à direita vemos que aqueles que lá estão nos aplaudem quando tomamos tal posição. Cabe, portanto, cautela, pois nossas bandeiras nunca serão as mesmas e se elas coincidem não é um bom presságio. Ao renegarmos essa prática podemos novamente conferir aos seres vivos uma áurea espiritual, com uma idealização da natureza, tratando-a até como uma divindade. Não sou um eco-fascista, não quero me arvorar à posição de defensor das samambaias ou dos ratos brancos, ainda tenho no logos.

Os seres vivos experimentam uma constante rotina de crueldade, será que a vivissecção é mais imoral do que a teia da aranha? Sei que aqui a argumentação se torna boba, pois o homem em sua racionalidade trouxe para si a ética, mas então retomo a provocação questionando se podemos estender o universo ético aos seres não racionais. Talvez o conceito de dor seja muito subjetivo e humano para ser aplicado a outras espécies, mas tal idéia também se revela frágil e cínica.

Será que todo conhecimento é válido? Será que o saber que brota da dor e do sofrimento de outros animais é legítimo e deve ser aceito? Responder não a essas duas perguntas traz uma série de implicações, que os vegetarianos bem sabem...

Talvez uma nova sensibilidade esteja em formação nesse exato momento, menos pretensiosa; parceira do ecossistema e disposta a conciliar a curiosidade humana com o respeito pela vida. Mas que essa nova humildade não represente o retrocesso e o fanatismo que imperou em épocas passadas, quando o único material para se extrair a verdade era um livro com páginas amareladas e idéias um tanto indigestas, que fazia da história natural algo tão edificante quanto a fábula da Arca de Noé.

6 comentários:

  1. Embora o texto tenha ficado vago, só acrescento que sou contra a vivissecção, ainda que relutantemente.

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  2. O problema de ter o Davidson como colaborador no blog é que ele vai eclipsar a todos nós, pois os textos dele são os mais bem escritos...Desgraçado!!! Já sei, podemos abrir seu crânio enquanto escreve pra ver como tudo funciona...pelo sucesso da anarquia!!

    Quanto ao tema, sou contra a vivissecção e pronto!! "Ah, mas temos que descobrir se tal e tal remédio funciona!". Foda-se!!

    Foi mal aí, se acharam que caí pro outro lado,como aponta o post, podem me xingar!!

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  3. Sim, mas pense, por exemplo, os transplantes de coração. Primeiro eles foram feito nos animais. Só após muitos insucessos, tornou-se possível a utilização dessa cirurgia para os homens.

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  4. Entendo! Concordo e aceito que os avanços são inegáveis através do uso desses meios. No entanto, já vi imagens e cenas de vivissecção e, definitivamente, não dá pra aceitar aquilo. Também já vi cenas de pessoas desesperadas em filas de hospitais esperando por uma doação de órgão, algo também inaceitável. Foi um dilema moral bem polêmico esse que você colocou.

    Mas como você mesmo disse, somos racionais, portanto, arrumemos outra jeito. Além do que, o que me deixa mais puto, é o fato de que grande parte dessas vivisseções são feitas pela indústria mais nojenta do planeta, com pouco ou nenhuma regulamentação: a Farmacêutica. Que,via de regra, pensa em uma coisa: lucro! Sendo a busca da "cura" ou do bem-estar apenas um pretexto pra isso tudo.

    Teríamos que encontrar alternativas...no caso dos alunos da área da saúde, talvez poderiam desde cedo ir para os hospitais e fazerem rresidências mais longas tendo o contato, dessa forma, diretamente com os pacientes sob orientação de profissionais já experiêntes.

    Bom...sei-lá...o que vocês me dizem?

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  5. Acabo de ler um texto interessantes no site do Ghiraldelli (http://ghiraldelli.wordpress.com/2009/04/23/a-filosofia-da-educacao-para-a-liberdade/), onde ele mostra que consistiria em certo cinismo o fato de pensarmos em diretios humanos deixando de lado nossa relação com a natureza...ou seja com tudo o mais o que está a nossa volta, ao visualizar essa questão só na chave Homem-Estado

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  6. Pois é, alguns já falam da necessidade de vivermos um ecocentrismo, isto é, pensar o bioma como o centro da existência. Deus (ou o sol...) está muito longe para ser ouvido, o homem é parcial demais, quem nos assegura a vida, de fato, é a natureza. Assim, tudo deveria girar em torno dela...

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