sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Os automóveis – parte 2



O problema do fluxo.

Há que defendermos os automóveis, pois eles são inocentes, inertes.

O problema do trânsito não são os automóveis.

Um carro é uma ferramenta. O problema do transporte é o individualismo. Opções individuais que obliteram soluções coletivas. Se substituirmos os automotores por bicicletas, em longo prazo os engarrafamentos voltarão a existir. Claro, a questão não se limita ao fluxo, outros fatores devem ser computados, como a poluição, a segregação espacial, etc.

A crítica à “Sociedade do Automóvel” é extremamente necessária, mas não podemos esquecer que uma “Sociedade da Bicicleta” ou uma “Sociedade do Patinete” pode ser tão ruim quanto. Em nossa contemporaneidade vivenciamos uma crise espacial, apesar de uma aparente retração do espaço, devido ao desenvolvimento dos meios de transporte, percebemos que o tempo dos deslocamentos se expandiu. Um exemplo seria confrontarmos o aumento do número de veículos particulares, supostos encurtadores das distâncias, com uma nova tendência em dispersar os equipamentos urbanos e afastá-los das áreas residenciais.

As elites destruíram as cidades, em seguida fugiram para condomínios fechados, escondidos em áreas arborizadas, atrás das montanhas, acessíveis somente por rodovias, sem imbricações com a malha urbana. Enquanto isso, os que residem nas negligenciadas periferias vivenciam dificuldades em acessar os centros metropolitanos, enfrentando congestionamentos e transportes coletivos em péssimas condições. Esse é o contexto no qual devemos atuar, conciliar os extremos que muitas vezes não se percebem.

Mesmo os automóveis de duas ou três décadas atrás atingem com facilidade a velocidade de 100 km/h, mas devido ao fluxo, nos horários críticos (rush), somente 30% desse valor costuma ser atingido. Uma carroça à tração animal situada na frente de um carro de luxo italiano restringirá a este último sua mesma velocidade q. O fluxo é letárgico e, a menos que você tenha um carro voador, não há como fugir da espera insana, inerente ao cotidiano de uma grande cidade. O que chamamos eufemisticamente de congestionamento seria melhor designado como “joga fora horas importante da sua vida”.

Essa constatação também explica porque há muitos acidentes com motociclistas. Não é nem tanto o descuido desses últimos (de fato, negligentes), mas sim uma tensão e um ódio sempre presentes. Aquele que possui um quatro rodas de 90 mil $, não aceitará com muita resignação ser ultrapassado por um duas rodas de 6 mil $. O trânsito é hoje um palco privilegiado para o aflorar das lutas de classes. A solidariedade entre os motoboys paulistas nos causa felicidade. No trânsito, a periferia tem conseguido impor satisfatoriamente seu ritmo e suas posições, os refinados motoristas em seus blindados com ar-condicionado maldizem a popularização dos automotores, que, aliás, eles próprios viabilizaram.

Longe de querer tomar partido – a empatia é espontânea, mas não articulada teoricamente; e as dificuldades de mobilidade na área urbana não podem ser reduzidas a posicionamentos tão simplistas do tipo bons X maus, ricos X pobres. Iniciamos o texto com a provocação: os carros não são culpados. Culpados são os motoristas. Carros não avançam sinais sozinhos. Carros não desrespeitam faixas de pedestres ou ciclovias sem um comando. Carros não se chocam uns contra os outros de forma autônoma.

Se esses motoristas virarem ciclistas, continuarão sendo péssimos condutores. O carro é só um pódio para a expressão suprema do individualismo, do consumismo e do ódio entre classes. Se formos fazer uma história do automóvel no Brasil, constaremos que esse veículo surge em um momento chave para as elites, quando elas negaram os bondes e os carris urbanos, buscando uma forma de deslocamento privilegiado. A principal vantagem do carro, no imaginário que então se constituiu, foi sua privacidade, necessariamente oposta à idéia de público. Em começos do século XX, os refinados descobriram que não teriam que conviver com os diferentes, colocou-se a possibilidade de segregação do pobre em guetos, fornecendo precários equipamentos de deslocamento.

Essa concepção ainda hoje prevalece, há menos ônibus (quem vem do latim OMNIBUS, isto é, para todos) nos feriados e domingos do que nos dias de semana. Tão evidente que nem merece maiores explicações, garante-se o percurso de ida e volta para os postos de trabalho, mas não há atenções quanto ao deslocamento dos trabalhadores nos momentos do ócio e da folga.

O carro não criou uma sociedade mais individualista, na verdade ele decorre desse mundo consumista e egoístico no qual o coletivo se dissipou. O carro é um dos principais troféus do capitalismo, mas ainda assim algo inanimado e dependente da vontade humana. Ele simboliza a competição e o mais alto grau de selvageria, sentimento explicitado nos tediosos e irracionais torneios de Fórmula I e similares.

O carro serve a senhores aos quais nós desafiamos, o carro expressa valores que recusamos. O carro deve ser destruído, não porque um mundo melhor surgirá ou então a natureza ficará a salvo, menos ainda porque um trânsito melhor se constituirá. O carro deve ser destruído, sim. Sim, porque será um abalo, um ataque, um enfrentamento formidável a uma visão de mundo que não pode mais permanecer.

Que caia o carro, mas que se liberte o motorista. Abaixo estacionamentos, viva jardins. Adeus automóveis, adeus ostentação e consumismo. Adeus flanelinhas, olá companheiros. Sumam autopistas, vivam os canteiros comunitários.

Os carros são meras ferramentas, invenções inócuas. Importante a reconciliação com o espaço para perdermos o desejo de devorar distâncias em segundos, unicamente pelo prazer de consumo constante – do tempo e do espaço.

Não lutamos contra a sociedade dos automóveis, lutamos contra a sociedade dos motoristas. Derrotar os motoristas significa salvá-los. Um carro a menos e um humano a mais, deixe seu carro em casa, mas deixe seu consumismo também.

7 comentários:

  1. Acho que há uma contradição entre a parte 1 e 2... mas a mensagem básica permanece.

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  2. Ótimo texto novamente David.

    Mas tem uma coisa, não creio que a diferença entre uma sociedade que opte majoritariamente pelo uso do carro difira apenas em termos de "fluxo" de outra que utilize bicicletas ou parinetes. Apesar de serem, os três, transportes individuais, a opção pela bicilceta envolve uma preocupação com a coletividade que não está inscrita na opção pelo carro.

    Ou sejam, quando opta pela bicicleta, escolhe algo menos perigoso, mais ecológico, que possibilita um maior contato com o meio, mais barato e, por isso, mais acessível, enfim, mais humano.

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  3. Sim. Concordo com o Marcio.

    Eu vejo problemas que são inerentes ao carro, independente do motorista.

    O fato do carro alongar as distancias, tornando o trajeto em muitos casos inviaveis para outros meios de transpote, seja bike ou até onibus; de isolar o motorista e os passageiros do mundo fora do carro, transformando o trajeto numa distancia a ser vencida; o fato de ser perigoso, muito mais do que bicicleta... acho que tudo isso é inerente ao carro.

    Não sei como seria uma sociedade de bicicletas, e acho dificil alguem prever. Eu ando de bike e me sinto autoritario as vezes, em relação aos pedestres. Mas são muito claras as vantagens sociais e individuais do fato de se ter a bike como meio de transporte.

    Mas tbm concordo com a ideia do texto...

    Parabens, pessoal, pelo Blog! Os textos tão foda!

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  4. Texto muito bom!

    Acabei não conseguindo comentar antes... mas tô muito sem tempo...

    Acho que preciso comprar um carro...

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  5. Concordo que não seja simplesmente culpa do carro, a culpa é da gente. Mas falar que uma sociedade da bicicleta é igual à do carro é errado. Primeiro porque bike ocupa MUITO menos espaço nas ruas, não polui e é quase impossível atroplear uma pessoa e esta vir a falecer. Ou seja, vá de bike!!!

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  6. http://www.youtube.com/watch?v=RMZ3bsrtJZ0

    muito boa a escolha da imagem, também recomendo o video

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