quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Viva Zapata! (Parte 02)



As pretensões do EZLN são alvo de muitas discussões. Uma das mais polêmicas é a dúvida sobre a intenção, ou não, de tomada do poder – o que acaba levando a discussão para debates do tipo “Até onde é um movimento de caráter libertário ou marxista” etc. Mas o ponto é: as múltiplas práticas e discursos desse movimento não nos permite uma classificação simples, pois vemos lá: ação direta em diversos setores, elementos reformistas, ações armadas, propostas subversivas, preocupações com questões culturais, ciberativismo, plataformas contra-culturais, anti-globalização, crítica ao poder centralizado, ecologismo, anti-capitalismo etc. A despeito disso tudo, entretanto, pode-se concluir sem maiores dúvidas: de forma alguma o Zapatismo se resume num projeto de poder, se é que ele possui essa ambição – até porque, como já disse Marcos: “Esquerda institucional é ficcção”.

Não existe uma clareza das propostas políticas dos Zapatistas. Numa altura do documentário “Zapatistas”(link/download), de 1999, Marcos afirma que “Não queremos derrotar um governo para nos colocar no seu lugar. O que queremos é que se abra um espaço democrático onde a sociedade pode participar e decidir que rumo político vai ter.”

Ou seja, qualquer discussão que tente delimitar a doutrina Zapatista é perda de tempo porque, simplesmente, ela não existe como algo pronto – ela se faz a cada momento e em cada lugar, daí a força e a validade desse movimento na inspiração de outros levantes em qualquer parte do mundo, bem como numa proposta de reinvenção da esperança em tempos de morte das grandes narrativas humanistas.

Tal discussão a respeito do poder tornou-se ainda mais polêmica quando da IV Declaração da Selva Lacandona, quando o EZLN criou a Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN), movimento civil, social e político – não militarizado – cujos membros não concorreriam a cargos eleitos pelo povo ou governamentais – dado não ser a tomada do poder a expectativa do movimento, diriam eles próprios na ocasião. A intenção era pressionar, de vários lugares, o governo mexicano e angariar mais apoio nacional e internacional para os insurgentes. Ainda criticavam o sistema de partidos políticos do Estado, e defendiam uma nova Constituição que defendesse a Justiça, a Liberdade e a Democracia, não apenas no seu viés eleitoral – mas uma democracia em que quem mandasse, devia fazê-lo obedecendo. O EZNL quis, assim, ser reconhecido como uma força política. A fim de lutar localmente e influenciar mundialmente os embates em defesa dos direitos políticos e sociais que vem sendo destruídos pela onda neoliberal.

Por meio do FZLN criaram-se dezenas de coletivos e grupos por todo o país, e continentes, que tinham como objetivo discutir e divulgar as propostas dos Zapatistas. O que o EZLN fez foi reestruturar a forma de fazer política longe dos paradigmas ‘estadocêntricos’ que vinham dominando a esquerda global há muito tempo.

Ainda sobre a questão do poder, Marcos colocou: “…houve uma mudança na posição do EZLN, a respeito do problema do poder. E essa nova posição sobre o problema do poder é a mudança que, dali em diante, mais fundo marcaria o caminho zapatista. Não nos demos conta, no primeiro momento – e quando digo "nós", somos todos, o grupo inicial de guerrilheiros e os povos das comunidades –, que as soluções, como tudo nesse mundo, constroem-se de baixo para cima. Toda nossa proposta anterior e toda a proposta da esquerda ortodoxa, até então, era o contrário disso: toda a esquerda ortodoxa sempre trabalhou na direção contrária; sempre trabalhou para resolver as questões, de cima para baixo. (…) Essa mudança, de baixo para cima, significava para nós não nos organizar nem organizar as pessoas para irem votar, nem para fazerem uma passeata, nem para gritar palavras de ordem; significava nos organizar para sobreviver e para converter a resistência em ocasião para todos aprendermos. Isso foi o que fizeram todos os companheiros, não o EZLN original, aquele pequeno grupo inicial, mas o EZLN já modificado pelo componente indígena.” E ainda: “(…) continuamos dizendo o que sempre dissemos: não nos interessa o poder; não queremos o poder; acreditamos que as coisas se constroem de baixo para cima.”.

Essa aversão dos zapatistas à política circunscrita à esfera do poder é fonte de outras polêmicas também, sobretudo frente a outros movimentos sociais, bem como junto a outros grupos guerrilheiros mexicanos que mantêm o projeto de tomada violenta do aparato estatal. A segunda guerrilha mais poderosa do México, o EPR – Ejército Revolucionário Popular – tece fortes críticas às concepções defendidas pelo EZLN e proclamadas pelo Subcomandante Marcos. Entre as críticas, destacam-se as que recaem sobre o fato do EZLN ter abandonado a luta armada de caráter ofensivo bem como ter estabelecidos linhas de diálogo com o governo (como foi o caso, por exemplo, do apoio Zapatista à aprovação de leis que reconhecessem a autonomia dos territórios indígenas). Fala-se também que os Zapatistas estariam mais preocupados com a comunicação do que a revolução propriamente dita.

Sem querer puxar a sardinha pro lado dos Zapatistas, mas já o fazendo, não posso deixar de lado a interessante informação de que, de todas as guerrilhas mexicanas atuantes hoje, e aí estou trabalhando com algo na casa dos 25 a 30 grupos, o único que não tem nenhum tipo de envolvimento com narcotráfico, práticas terroristas, seqüestros e assalto a bancos como forma de financiamento das campanhas e coisas do gênero são os próprios Zapatistas. Vê-se, desde aqui, que a proposta desse grupo consiste, definitivamente, em algo inovador. Já que consiste num movimento que não uso a dignidade humana como meio, mas sim como fim.

Voltando ao ponto; nos chamados “Encontros Intergalácticos”, organizados pelo EZLN e simpatizantes, e que reúnem tendências as mais variadas possíveis da esquerda mundial, já realizados no México e em várias cidades da Europa, decidiu-se pela organização de redes intercontinentais sem mando centralizado, nem hierarquia, fundamentada nas novas mídias digitais, contra o lado pernicioso da globalização: o neoliberalismo. Um dos resultados práticos desses encontros foi o estabelecimento da AGP – a Ação Global dos Povos – que, como se sabe, esteve e está envolvida em manifestações anti-globalização por todo o mundo.

Inclusive, vale a pena destacar esse último elemento, que é a fato dos Zapatistas estarem, desde o início, extremamente afinados com as recentes tecnologias comunicacionais, fazendo da internet um aliado poderosíssimo desde o levante em 1994 até então. No site do EZLN, você tem acesso a vários tipos de informações, bem como pode assinar a newsletter que mostra, quase que diariamente, as constantes investidas do governo, da polícia, do exército e de grupos paramilitares, visando o enfraquecimento, a intimidação e desestruturação do movimento. Para se ter uma idéia dessa pressão, hoje mais da metade do exército mexicano está acampado no entorno dos setores Zapatistas, cometendo todo tipo de violência e barbaridades.

Existe uma política de intensa pressão e intimidação, via criação de um clima constante de medo e insegurança, pelas forças militares que cercam a região, impondo à população civil o clima de uma verdadeira Guerra de Baixa Intensidade ( ou Guerra de Fricção), bem como medidas de cooptação do movimento, que visam esvaziar o apoio da população ao EZLN. Impede-se que os civis façam as atividades mais básicas, como trabalhar, por exemplo. Nesse processo, grupos paramilitares, ligados a políticos priistas locais, proprietários de terra e algumas comunidades sob domínio desses, usam de todos os expedientes disponíveis, inclusive os que passam por cima dos Direitos Humanos e pela Convenção de Genebra. Para se ter uma idéia do aparato envolvido nessas ações, além da polícia e do exército que, em função de mudanças legislativas, agora atua na defesa interna também, veja a lista dos principais grupos que lutam contra os Zapatistas: Máscara Roja, Paz y Justicia, Los Chinchulines, Los Degolladores, Alianza San Bartolomé de los Llanos, Fuerzas Armadas del Pueblo, Movimiento Indígena Revolucionario Antizapatista, Tomás Muntzer, Los Tomates, Los Quintos, Los Plátanos, Los Chentes, Los Puñales, Justicia Social, Organización Clandestina Revolucionaria e Los Aguilares. (Vide Mapa)

O apelo midiático também auxilia na difusão da mensagem zapatista, bem como impede que tudo se arraste para uma guerra civil direta e violenta – pois por meio da internet é possível o reconhecimento e a fiscalização pelas comunidades nacional e internacional sobre o que se passa na Selva Lacandona. A implantação de um rede virtual em Chiapas em meados de 1993 (a La Neta!), colocou on-line as ONG’s que trabalhavam na região, inclusive algumas voltadas para a questão dos Direitos Humanos. Por meio dessa tática, conseguiram forçar a negociação de paz, até porque a luta armada não faz parte da proposta, bem como a conquista de uma série de reivindicações bastante razoáveis: a reforma eleitoral do viciadíssimo sistema mexicano (que culminou com a perda do poder por parte do PRI, nessa situação há 70 anos), melhoria das condições de saúde na região, reforma educacional incluindo as mais de 30 línguas indígenas no ensino, a implantação de um governo autônomo dentro do estado de Chiapas e a criação de um estado de constrangimento em vários aspectos no contexto das negociações do Governo Mexicano junto do seus parceiros no NAFTA e outros organismos internacionais como FMI e BID.

Continua...

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