Dizem que periodicamente, no intervalo de décadas, nossos sentidos sofrem mudanças, alterando suas potencialidades e qualidades. As balas coloridas e os chicletes super-açucarados da infância deixam de ser saborosos com o passar dos anos, enquanto o amargo e o azedo adquirem um novo interesse para nossos paladares. Eu, pelo menos, já sou capaz de perceber ligeiras modificações em minhas percepções; a acuidade visual diminuiu, os pirulitos e os caramelos se transformaram em coisas grudentas e insípidas que agarram nos dentes.
Já o olfato parece ter melhorado significativamente, fiquei bem mais atento para perfumes e outros odores, minúcias que por vezes são até difíceis de descrever. Mas há um cheiro se tornou parte do meu cotidiano, quase todos os dias, sobretudo se o ar está parado, um aroma muito adocicado invade as ruas do bairro onde moro e, se as janelas estiverem abertas, penetram nos aposentos de minha casa. É um cheiro enjoativo, a primeira vez que as pessoas o sentem não sabem identificá-lo, apenas expressam o desagrado. Uma fragrância que sempre esteve presente, mas com a qual eu havia acostumado, e só agora ela volta a incomodar-me.
É o cheiro da morte, o cheiro do matadouro, situado a muitos quilômetros de distância, mas que percorre a parte baixa da região, misturando-se com as emanações melífluas dos córregos transformados em esgoto. Odores que também se mesclam com outra fragrância, advinda da parte alta de um bairro ainda mais distante, originada nas refinarias da Petrobrás.
Aos iniciados é muito fácil distinguir o cheiro do matadouro, inicialmente algo quase agradável, mas que rapidamente enjoa o estômago, dando a sensação de que algo vivo encontra-se em lenta decomposição. Esse matadouro é antigo, surgiu antes que a urbanização se intensificasse, mas após o crescimento do bairro não houve qualquer esforço para mudar suas instalações. As vizinhanças alegam que o estabelecimento é gerador de emprego, além disso, sua salsicharia vende produtos muito baratos. Afirmam, simplesmente, que se acostumaram ao cheiro.
E é verdade. Durante muito tempo também estive imune a esses ares pútridos, uma revolução interna deve ter se operado em mim para que eu recuperasse a sensibilidade para tal odor. Não quero aqui me opor à indústria da carne ou levantar bandeiras veganas, minha fala é muito mais comedida. Não sei o que ocorre dentro dos muros daquele estabelecimento, talvez essa ignorância seja até apropriada, conveniente. Pretendo simplesmente ponderar que o despertar de nossos sentidos é vital para uma posição de recusa às injustiças institucionalizadas e cotidianamente ignoradas.
Fingimos não sentir a fetidez das latrinas ao céu aberto, nas passarelas e embaixo dos viadutos. Há homens, mulheres, crianças e velhos que se acocoram ao chão e ali expelem seus fluídos, tais quais nossos animais domésticos, que desfrutam, a propósito, de uma dignidade maior – ao menos nos dispomos a recolher seus excrementos.
Fingimos não ver nossos semelhantes caídos ao chão, cobertos de sujidades, restos de alimentos, poluições incrustadas, feridas mal cicatrizadas, manchas de vômito. Naturalizamos essas cenas, passamos apressadamente por esses invisíveis ao caminho da agência bancária ou dos shoppings centers, com aqueles banheiros tão bem aromatizados, com cheirinho de eucalipto ou hortelã.
Fingirmos sentir apetecência por aquelas massas que nos servem nas grandes redes de fast-food. Nem sabemos o que comemos, mas passamos a língua entre os lábios, “que delícia, hum, hum”. No fundo, intuímos nossa estupidez em deglutir aquelas poções de sabores indetectáveis. O cuspe do cozinheiro no seu hambúrguer é o menor dos problemas.
Nossos sentidos estão adormecidos, mortos, dominados por um sentido maior, de natureza, digamos, empresarial, que diz o que devemos ouvir, degustar, cheirar, olhar, tocar.
Recusamos isso.
Não queremos ouvir o som caótico das cidades. Dispensamos o cheiro marrom dos esgotos. Recusamos o sabor metálico dos condimentos vendidos nos hipermercados. Não tocaremos naquelas estruturas gigantescas de concreto, que demandaram a extinção do verde ao redor. Queremos ver um outro mundo que não esse.
A assepsia dos shoppings é tentadora (que bela ilusão de perfeição), mas ela vai acabar. Chega de enganação, o nosso despertar começou.
Sentidos mudam, individual e coletivamente. Vamos amadurecer nossas percepções, uma sensibilidade autêntica e vívida nascerá.
Aos decadentes sensualistas fica um aviso: cuidem-se, pois nossos paladares não descartaram a possibilidade antropofágica.
Sinto que estou com fome, vou ao Habib's
ResponderExcluirA isso que colocou, se some toda a estrutura virtual em que nos inserimos, com seus simulacros de sensações... da já pre-histórica televisão, passando pelos video-games, até as relações virtuais... Estímulos que, e aí sinceramente não posso afirmar com certeza sobre nenhum dos dois, talvez despertem nossas sensações, mas talvez as anestesiem...
ResponderExcluirAlém de tudo o que recebemos da Civilização que, há muito, vem substituindo o sensorial pelo racional... não mais sentimos... agora racionalizamos sobre como poderia ser vivenciar essa ou aquela sensação... e quando nos deparamos com elas, ou nos utilizamos de meios físicos ou de meios psicológicos para ignora-las.