terça-feira, 6 de outubro de 2009

Viva Zapata! (Parte 01)



Não só na minha modesta opinião, mas segundo numerosos analistas mundo afora, e como os próprios fatos vêm mostrando, o auto-entitulado Ejército Zapatista de Libertación NacionalEZLN – é o que existe de mais interessante e revolucionário (sem medo de ser piegas ou tachado de ultrapassado) que hoje se apresenta nesse belo planeta azul onde vivemos. Falar do Zapatismo é coisa que já devia ter sido feita aqui no Blog do C.I.S.C.O. mas, dada a complexidade da questão, só agora pude reunir energia para estudar um pouco mais esse movimento que vem oxigenar a forma como a atualidade pensa o ‘fazer político’. Dessa forma, nos meus próximos posts, dedicar-me-ei a falar sobre e refletir acerca desse fantástico processo-eternamente-por-se-fazer em que consiste a, creio que assim posso chamar, como eles mesmo fazem, Intuição Neo-zapatista.

1º de janeiro de 1994, 3000 homens e mulheres, armados, tomaram controle das principais cidades no entorno da selva Lacandona – Estado de Chiapas, no México. As forças são compostas majoritariamente por índios de várias etnias, e uma minoria de mestiços – entre eles o porta-voz do movimento, o Subcomandante Insurgente Marcos. Os governos Estadual e Federal enviam reforços militares, no número de três para cada insurgente, que entram em choque com a guerrilha, ocorrendo uma série de baixas de ambos os lados. Apesar disso, a guerrilha consegue uma retirada vitoriosa para dentro da floresta. Essa ação estava enraizada há pelo menos duas décadas de organização política e social entre as comunidades de pequenos camponeses de Chiapas e Oaxaca,estado vizinho. Essas pessoas foram assentadas na região em meados das décadas de 1930/40, como parte da solução para uma crise gerada em função da expulsão dos chamados acassilados (camponeses sem terra) das grandes fazendas de outras localidades do país. No entanto, nunca contaram com algum tipo de apoio ou segurança, sob um contexto em que a política fundiária flutuava sempre ao sabor dos interesses do grande capital, do governo e de oligarquias locais. A partir de então, vê-se uma sucessão de perdas dos direitos e patrimônio dos camponeses, indígenas e mestiços da região – que corresponde ao setor mais pobre do país, apesar de ser muito rico em recursos naturais e energéticos que, entretanto, nuca foram convertidos em benesses para as populações locais.

O México preparava seu ingresso no NAFTA, ficando assim obrigado a estabelecer uma série de medidas neo-liberalizantes, o que fragiliza ainda mais as comunidades locais. Desse modo, temos o fim da propriedade comunal da terra (os Ejidos) – por meio da eliminação do histórico Artigo 27 conquistado com a Revolução de 1911), reassentamento de comunidades inteiras sob pretextos ecológicos, derrubada de tarifas protecionistas dificultando o comércio local baseado no milho, café, silvicultura e pequena pecuária. De modo que hoje cria-se gado para o abastecimento de redes de fast-foods e outras corporações norte-americanos onde antes existiam terras comunais.

Em meados de 1990 os camponeses organizam-se pacificamente contra essas medidas, chegando a mobilizações que contavam com imensas marchas contando milhares de indígenas que apelavam para a salvaguarda dos seus direitos e interesses. Quando ignorados, decidem mudar radicalmente as táticas de enfrentamento. Começam a vender a produção e mobilizar tudo e todos a fim de se organizarem e comprar armas. Em 1994 lançam a I Declaração da Selva Lacandona “Hoy Decimos Basta!”, ou “Hoje Dizemos Basta!”.

Aqui, vemos a amplitude da ocupação Zapatista no interior do Estado de Chiapas, localizado na região sudeste do país, após os primeiros combates.

Nesse site há uma série de mapas temáticos da região – pra melhor visualizar o conflito e as disposições das forças envolvidas

O movimento contou com o apoio de bispos, padres e catequistas da Igreja Católica, que passou dos milhares, fundamentados na Teologia da Libertação. Ajudaram sobretudo a organização dos sindicatos e dos camponeses, educação e informação. Tudo isso apoiado pelo forte sentimento religioso dos indígenas e povos da localidade. Vale lembrar que a Igreja, na região, vinha de um longo histórico de conflitos com o PRI (Partido Revolucionário Institucional) de Chiapas e com os proprietários de terra. No entanto, os católicos vão contra a alternativa armada e não apoiaram a insurreição de 1994.

Os militantes que fizeram parte dos conflitos armados eram, em sua maioria, indígenas das próprias comunidades atingidas pelas políticas governamentais, e por ex-militantes urbanos vindos de experiências em grupos guerrilheiros estudantis derrotados em fins dos anos 60, em sua maioria maoístas. Começa aí uma interessante história de sincretismo de idéias, diferentes tradições culturais e religiosas, imbricação de numerosas formas de prática política e social que culminou no estabelecimento do que hoje constitui o Neo-Zapatismo. Lembrando que as lideranças e os processos de tomada de decisões são fundamentadas na prática da democracia direta construída entre as próprias comunidades indígenas. O famoso porta-voz do movimento, o Subcomandante Marcos, não tem autonomia, e não teve quando dos levantes, para tomar decisões por si só ou baseado em pequenos grupos revolucionários vanguardistas.

As decisões devem ser endossadas por toda a comunidade organizada – até porque conta-se com toda ela quando das ações e para assumir as responsabilidades. Pessoas que não aceitavam as propostas definidas pela comunidade, chegaram a ser expulsas por recusar a participação no levante armado. O apoio dos civis em 1994 foi esmagador, refugiando-se juntamente na floresta quando da invasão das tropas federais e estaduais em 1995. Hoje, todos os líderes do Comando Geral do EZLN são escolhidos por meio de votações nas comunidades - comunidades essas que, também, os dão todo o suporte material além de apoiar a tática de “esconde-esconde” da guerrilha.

Os MAREZ (Municipios Autónomos Rebeldes Zapatistas), cidades sob controle do EZLN, correspondem à estrutura política/administrativa do movimento. É expressamente proibida a participação ou influência de quaisquer integrantes ou elementos do braço armado dos Zapatistas nas estruturas administrativas desses municípios, de modo a manter o princípio do auto-governo e do municipalismo tradicional tão caro às comunidades indígenas e camponesas. Essas localidades são governadas por Conselhos Autônomos, formados por homem e mulheres da região, que se ocupam de diversas questões como saúde, educação, trabalho, cultura e justiça. Existe todo um mecanismo que possibilita a participação do maior número de pessoas possível. Dentre as várias práticas existentes vê-se o voluntariado, o trabalho cooperativo e a formação de cooperativas, sem esquecer da prática da economia solidária. Não existe um sistema prisional ou polícia nos MAREZ, de modo que os “criminosos” não deixam de ser vistos como membros da comunidade, sendo-lhes aplicadas penas alternativas.

Esses municípios, por sua vez, fazem parte de um contexto mais amplo, espécie de regionais denominadas Caracoles. Cada localidade é representada por delegados e promotores escolhidos em assembléias, rotativos e destitutíveis a qualquer instante, que juntos formam as Juntas de Buen Gobierno. A função desse nível mais alto de governo é administrar as relações entre os povoados, bem como suas relações com o estrangeiro.

Algo que faz da experiência zapatista objeto de interesse é que, de todas as tradições que confluíram para o movimento, nenhuma delas manteve-se “pura”, ou detêm ambições de hegemonia. A cultura, hábitos e identidades indígenas são muito importantes, mas não podemos rotular o Neo-zapatismo como um movimento de caráter étnico. As diferença entre os indígenas, que historicamente contribuíram para o seu enfraquecimento frente ao colonizador, agora não consiste mais em um problema de bloqueio ao diálogo e cooperação. Em função das várias idas e vindas, desapropriações e etc., não existe mais uma homogeneidade entre as várias etnias indígenas envolvidas no processo, de modo que o principal elemento de unificação desses grupos é o fato de que todos se vêem como camponeses mexicanos explorados. Por parte dos guerrilheiros urbanos de origem marxista, o deslocamento é ainda mais interessante, como podemos ver nessa declaração do Subcomandante Marcos, onde afirma ter chegado na região com um projeto leninista/maoísta pronto de revolução, mas que acabou “perdendo” para os indígenas, reformulando por completo as suas percepções sobre mudanças sociais, liberdade e organização.

Então diz: “…esse exército e sua concepção sofreram uma derrota nos posicionamentos iluminadores, nas suas idéias de direção, caudilhistas, de revolucionários clássicos, segundo as quais um grupo de homens converte-se em salvador da humanidade ou do país. O que aconteceu, então, foi que essas idéias foram derrotadas no momento em que nos confrontamos com as comunidades e percebemos que, não apenas não nos entendiam; além disso, as comunidades tinham propostas muito melhores que as nossas. (…) Não tínhamos o que ensinar a eles em matéria de resistir. Nós é que nos convertemos em aprendizes, nessa escola de resistência, de saberes construídos em cinco séculos de resistência.”

Apesar dos vários elementos de caráter libertário (magonistas, anarco-comunistas entre outros), bem como marxistas (sobretudo vindo do socialismo libertário e do socialismo conselhista de tom luxemburguista), misturados ainda com as tradições de autonomia e solidariedade comunal dos indígenas, o EZLN não se vê como um movimento subversivo. Identificam-se como “patriotas” e “democratas”, fundamentando-se no Artigo 39 da Constituição mexicana que assegura o direito à alteração ou modificação da forma de governo. Há também apelos a discursos de tom terceiro-mundista, anti-imperialistas e por aí vai.

Interessante nisso tudo, também, é a preocupação com a estratégia política com forte teor pragmático. Não se sabe até que ponto o movimento tem um caráter nacionalista de fato, de modo que isso pode ser usado a fim de conseguir a simpatia de outros setores sociais, ganhos concretos para o movimento na sua relação tensa com os poderes constituídos, bem como deslegitimar discursos que visem uma repressão mais firme contra suas práticas. Mas, independente dessa questão do ser ou não ‘verdadeiro’, o fato é que isso foi muito bem usado por parte dos insurgentes. Isso porque fundamentam muito de suas críticas no viciado processo eleitoral mexicano, no domínio clientelístico do PRI em Chiapas (maior reduto eleitoral do partido no país), e à corrupção enraizada em todo o processo político e administrativo do Estado Mexicano. O levante não teve a data de escolhida por acaso, mas sim em função do fato de que o país acabava de entrar para o NAFTA, bem como em função das pretensões eleitorais e políticas de uma série de importantes líderes mexicanos o que, certamente, os fariam pensar mil vezes antes de levar a cabo repressões grotescas como tradicionalmente aconteciam às manifestações desse tipo.

Continua...

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