sábado, 14 de agosto de 2010

Esboços para um pensamento sobre a pirataria



Importa os esforços para a elaboração de um pensamento libertário sobre a pirataria, e com isso apresentamos algumas problemáticas relativas à sua prática. Em uma primeira acepção, a pirataria tende a se conceituar como um ato de interferência em processos produtivos já estruturados visando à apropriação de bens, ícones, imagens e a instrumentalização de fetiches direcionados para o lucro de terceiros, completamente desvinculados dos produtores e proponentes originais.

A imagem clássica é aquela do pirata de olho de vidro e perna de pau que pilha navios e leva a insegurança aos mares, um bandido e fora da lei que atrapalha o fluxo econômico natural. Essa visão estereotipada é comum nas representações cinematográficas e nos livros de história relativos ao período das navegações compreendidos entre os séculos XVI ao XVIII. Os estudos tradicionais sobre o tema apontam, inclusive, que na Antiguidade uma das primeiras formas de comércio (na verdade a menos evoluída) teria sido a pirataria.

Trata-se de uma elaboração do pirata como um sequioso de riquezas que coloca em risco a própria espontaneidade e racionalidade do comércio – ao invés das trocas, a opção feita é pela pura e simples pilhagem. Quando chegamos a Era dos Estados Nacionais, com as políticas mercantilistas e metalistas das monarquias européias, observa-se uma intensificação das atividades piratas. Cabe uma distinção entre o pirata e o corsário, pois este último age em nome do rei, com uma carta que o autoriza a abordar e a tomar as riquezas dos navios das nações rivais.

Não é o “roubo” em si que gera pirataria, mas sim quais os agentes envolvidos no processo de rapinagem. Disputas entre os Estados Nacionais faziam parte da política internacional, sem abalar as economias capitalistas então em gestação. O corsário estava a serviço de uma poder piramidal, um estado coletor de metais dirigido por uma realeza interessada em consolidar seu mando. Já o pirata atuava como o desajustado, aquele incapaz de seguir “o modo natural de se fazer as coisas”. Nesse sentido, nossa primeira constatação enfatiza a natureza desordeira e anti-estatal do pirata. Ele não espera seguir a lei ou ser subserviente ao seu rei.

Que ninguém se engane em pensar que esse pirata dos setes mares seja o protótipo de um anarquista; não, ele também faz parte das engrenagens do capitalismo em seu viés mais parasitário. No entanto, sua atuação representava um ruído ou distúrbio, interferência na lucratividade dos detentores do poder econômico e político. Apresentamos uma segunda ponderação: a pirataria da Idade Moderna se consistiu na atuação de expropriadores particulares rapinando grandes expropriadores. Os países que mais sofreram as ações dos piratas foram as monarquias ibéricas, que por sua vez moviam uma vertiginosa exploração das riquezas na América.

O dito “ladrão que rouba ladrão” é a melhor simplificação da noção de pirataria. A hipótese apresentada sugere que em momentos históricos de extrema expropriação de bens coletivos, agentes individuais (não necessariamente visando o bem público) interferirão nesse roubo, com maior ou menor sucesso. Piratas franceses atacavam navios espanhóis ou portugueses, que por sua vez haviam retirado riquezas das terras americanas.

Essas reflexões nos oferecem um paradigma para a leitura da pirataria, sinteticamente estruturada em três princípios:

1. O pirata é contra a ordem, não por uma vocação ideológica, mas em busca do benefício próprio.

2. A pirataria é a apropriação de uma apropriação prévia.

3. A pirataria é uma resposta a momentos históricos no qual abundam os roubos orquestrados por grandes centros de poder e inexistem canais ou forças com eficácia para impedir essas expropriações.

Nesses parâmetros, a atitude do pirata é egoística, mas suas implicações tendem a ser libertárias. O pirata trás a tona a opressão do Estado e, inconscientemente, questiona suas pretensões de controle. Quando criança, lembro que em meu passeio pelo parque, chamava atenção as vendedoras de maçã do amor. Eram maçãs muito bonitas, caramelizadas e cobertas de granulados coloridos. Mas essas vendedoras tinham que fugir dos fiscais municipais, ou seus produtos seriam aprendidos. Eu não conseguia entender como a venda de maçãs podia ser irregular.

Aquelas mulheres eram piratas, pois questionavam e usurpavam as prerrogativas do Estado: “A minha maçã eu vendo para quem eu quiser, aonde eu quiser e como eu quiser”. Intencionavam o lucro, mas desafiavam uma esfera de poder que se julgava no direito de dar a licença a uma barraca e negá-la a uma ambulante.

Portanto, em nossa tentativa de compreender os reais significados da pirataria vamos encontrar uma verdade que não pode ser tangenciada: os piratas são fracos. Jamais enfrentarão frontalmente os conglomerados de poder – as principais armas piratas são o anonimato, as ações subterrâneas e as fugas. Não vale a pena insistirmos na romantização do pirata, ele esconde hoje para escapar amanhã.

A atual pirataria somente não foi extinta pelos grandes centros do poder (tal como aconteceu com os piratas dos mares no século XIX) porque ela se encontra muito disseminada e pulverizada. Existe também uma modalidade contemporânea – talvez erroneamente chamada de pirataria – que promove uma apropriação dos bens pertencentes aos detentores de capitais sem visar lucro particularizado e expressando intencionalidades políticas. Questionamentos ao capitalismo e ao consumismo integram as agendas dos partidos piratas europeus, mas estamos diante da utilização de uma imagem dos bucaneiros da Era Moderna discrepante de suas reais vocações.

Disponibilizar arquivos MP3 em um site não equivale a venda de DVDs na Rua Augusta. As intenções diferenciam essas duas práticas, não obstante ambas serem tidas como pirataria. Na verdade, são justamente os piratas confessos os mais vulneráveis aos ataques, porque se esquecem de manter a condição básica de foras da lei: anonimato e enfrentamento indireto. Nos últimos meses, vários canais que compartilhavam filmes, livros, músicas e jogos saíram da rede, em ações coordenadas por associações de Direitos Autorais. Esses piratas convictos são alvos fáceis e a confusão feita no nível teórico certamente pode significar uma derrota definitiva.

A crença de que o compartilhamento de arquivos na rede é invencível carrega um otimismo perigoso. O Estado (demorando mais ou menos tempo) sempre logrou em infligir sérios danos aos seus questionadores. Essa pirataria heróica e voluntária não tem encontrado condições (contexto) favorecedoras para a expansão. Nesse exato momento os conglomerados de poder estudam mecanismos para extirpá-la em definitivo. Creditar o sucesso desses web-bucaneiros às novas ferramentas informacionais sugere uma tecnofilia ingênua.

O presente ensaio diferencia a pirataria clássica da pirataria heróica e politizada, apostando em uma possibilidade maior de sucesso da primeira forma. Isto porque a pirataria é inerente às fases mais selvagens e canibalescas do capitalismo, não representam em nenhuma medida um caminho para a superação do status quo. Antes, reforçam a busca pelo consumo por todos os meios disponíveis.

Como força de antagonização ao capital, a pirataria deve evoluir para formas mais consistentes, deixando de se focar exclusivamente na bandeira da “livre distribuição” e enfatizar a “livre produção”. A obsessão em adquirir os bens expropriados e acumulados pelos conglomerados de poder minimiza os potenciais rebeldes desses novos piratas. Um questionamento mais profundo traria a tona a problematização da indústria cultural e da devoção excessiva aos cânones culturais ocidentais, bem como uma crítica à voracidade insaciável pelo consumo de imagens.

A pirataria contribui para a causa libertária, mas sua importância não pode ser exagerada sob pena da obliteração de ações políticas mais articuladas voltadas para o ataque ao Estado e às formas vigentes de produção e apropriação.

2 comentários:

  1. Não compartilho do mesmo ceticismo acerca da pirataria contemporânea...

    Primeiro temos que lembrar que a apropriação e a resignificação de ícones do passado é prática corriqueira de todos os grupos e é fundamental para a construção de identidades e a difusão de idéias... vide os monopolistas e oligopolistas que insistem em se chamar de liberais, democratas ou social democratas...

    Nesse sentido, os piratas atuais em muito se distanciam dos antigos bucaneiros... mas, ainda assim, se apropriam de figuras fortes do imaginário ocidental para difundir idéias de livre consumo e de compartilhamento em rede... talvez nesse sentido estariam mais para robin hood...

    Delimitações conceituais a parte, se faz importante destacar alguns elementos das táticas desses grupos... ações descentralizadas e transnacionais, compartilhamento direto da informação, constante reinvenção... lembremos que o surgimento do napster foi a poucos anos... observa-se o quanto avançamos em estratégias e ferramentas de compartilhamento...

    Que os Estados e as Corporações estão atentas a tudo isso, todos sabemos...que há ferramentas para frear a livre circulação em larga escala da informação, também acho provável... mas devemos lembrar que eles são reféns de uma idéia que constantemente tentam, a duras penas, sustentar, que é a do espaço da liberdade na democracia capitalista contemporânea...

    Cabe aos piratas modernos se apropriar não só de suas riquezas e de seus produtos... mas também de suas mentiras e de seus discursos

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  2. Esse é o ponto de inflexão que tratei tangencialmente no texto anterior...a filosofia e os movimentos libertários, até hoje, não mostraram fôlego pra sugerir, quanto mais sustentar, algo que vá além de um espaço autônomo dentro do sistema maior. Sobretudo nessa era do pós-anarquismo nos tornamos ainda mais próximos dessa noção do pirata expropriatório e fujão. Veja a enorme presença dos anarquismos virtuais e a fraqueza dos reais. Apesar da fantástica idéia do sociedade baseada em redes de cooperativas federadas, em poucos momentos históricos tais projetos tiveram alguma consistência real. Hoje em dia, com a ditadura do trabalho a todo vapor, encontramos daca vez menos tempo livre e interesse pra pensar e construir zonas autônomas. Se quisermos ir de fato além disso, concordo contigo que deveríamos ir além da apropriação e da satisfação do/com os restos do sistema. Devemos agir no campo da criação de novas relações, e não apenas fazer piquiniques nos fins de semana. Mas aí vem as perguntas: Como? E, de fato, as pessoas querem isso ou estão satisfeitas comprando seus carros em suaves e infinitas prestações?

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