quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Mais Democracia Nunca é Ruim


Dando continuidade às questões que vêm sendo levantadas nos últimos textos, gostaria de aprofundar o ponto relativo à estratégia, ou melhor, tentar perceber a estratégia como um fim em si mesmo. Isso vale para discutirmos as inflexões dos movimentos libertários reais e virtuais, procurando encontrar elementos teóricos que possibilitem um fortalecimento da autonomia nos dias atuais. Esse post também procura por em debate uma possível realocação das esperanças libertárias.

Penso que um dos erros centrais das esquerdas – não todas –, bem como de algumas direitas, no passado, seria ver a democracia como inimiga a ser combatida. No caso dos anarquistas, é um erro analisar a democracia e os estados modernos apenas na chave de uma burocracia que detém o poder e nos oprime. Essa visão faz muito sentido se analisada frente aos séculos XVIII, XIX e parte do XX – e olhe lá! É bastante coerente, também, com leituras automáticas da realidade feitas a partir de certa filosofia pós-estruturalista – alguns falam até em “campos de concentração a céu aberto” ao definirem a atual conjuntura.

Certas críticas pós-modernas chegam afirmar que não há diferenças significativas entre democracia e totalitarismo, estando presente, em ambos os casos, todo um aparelho repressivo de disciplinarização dos corpos e mentes. Já ouvi também, da boca de muitos autodenominados anarquistas e/ou libertários, que viver sob uma ditadura não seria muito pior do que sob o regime em que vivemos agora, e até, dependendo do caso, a situação seria melhor. Minha percepção sobre isso se encerra em algumas poucas possibilidades, de modo que pessoas que afirmam tais calamidades: ou estão filosofando de dentro dos seus confortáveis gabinetes climatizados, ou são pseudo-intelectuais que vivem em apartamentos caros, ou, ainda, são retardados obcecados por uma doutrina política engessada há mais de um século.

Na vida real, entretanto, a participação política tem espaços para ir muito além do princípio da representatividade, e a vida social não chega a ser tão sufocantemente controlada. Felizmente, ou infelizmente para alguns, ainda não vivemos como mostraram alguns filmes distópicos da década de 80/90. A veiculação desse tipo de interpretação da realidade só nos traz medo, imobilismo ou, no máximo, pretensões de redenção através de banhos de sangue, espontaneísmos heróicos ou coisas do gênero.

Não devemos lutar contra a democracia. Por duas razões básicas: em primeiro lugar, é ridícula a leitura que mostra Democracia e Capitalismo como sinônimos ou coisas que só existem quando acompanhadas uma da outra. Em segundo, é igualmente reducionista criticar as “democracias reais” da atualidade encerrando a discussão em torno da questão da representação, dos partidos, do aparelhamento e toda essa dimensão em que, muitas vezes, costuma-se fechar a crítica libertária sobre o assunto.

Nossa postura deveria caminhar na direção contrária, procurando aprofundar, radicalizar – no sentido de ir às raízes mesmo – os atuais regimes democráticos, buscando uma democracia cada vez mais palpável, pra não dizer Direta. Nesse sentido, me irrita a completa falta de compromisso dos anarquistas em geral em ignorar solenemente temas como Reforma Política, Reforma do Judiciário ou a questão do voto obrigatório – no caso do Brasil. Partindo do pressuposto que o Estado deva ser destruído por se constituir no ‘Grande’ empecilho à liberdade dos povos, ficam de lado elementos centrais para a construção de uma pedagogia da autonomia, bem como de uma prática da liberdade, que seriam fundamentais para resgatar, e redefinir, nossas esperanças e espaços de manobra política.

Quer queiram, ou não, a Democracia está aí, foi uma conquista que sacrificou a muitos: incompleta, indireta, xôxa, simulada ou não, e se é aplicável a todos os lugares, é algo que só cada sociedade poderá responder. O ponto fundamental é sabermos que a vida em democracia é sempre incompleta, de modo que nos resta não destruir o que existe para começar do zero, mas sim radicalizar, investindo na ação direta (se pacífica ou não, creio que isso depende de cada circunstância), nos aliando aos mais variados grupos e tendências (variando, também, conforme o contexto e guardando o devido bom senso, claro), enfim, construindo uma Democracia Direta, que dê espaço para a “inventividade”. E quando falo de Democracia Direta, não penso, necessariamente, no fim das burocracias estatais – mas sim num processo de crescente horizontalização das tomadas de decisão das mais diversas naturezas – o resto é conseqüência.

O neoliberalismo, essa doutrina que inocula a tudo a lógica do mercado, vem instrumentalizando e corroendo a Democracia, de modo que deve ser combatido duramente com mais Democracia. Sou muito resistente a análises puramente conceituais, de modo que afirmações do tipo “A existência do Estado pressupõe miséria”, sugerem uma profunda alienação em relação à vida real em favor de análises puramente filosóficas que não vão além do papel. Isso me leva a crer que determinados setores de autoridade do estado devam ser restituídos, sob a pena de, daqui a pouco, nos convertermos em súditos de meia dúzia de transnacionais que, estas sim, não possuem absolutamente nada de democrático nas suas constituições e funcionamento. E a isto, nós anarquistas, estamos apenas assistindo de camarote.

Por obsessão com a utopia libertária, os anarquistas, ironicamente, têm a deixado de lado. Em recente entrevista, o professor Edson Passetti afirma sobre os anarquistas do XIX/XX: “Eram mutualistas e federalistas. Por isso mesmo, a possibilidade da utopia anarquista acontecia, diariamente, por meio de atividades produtivas, educativas, culturais e de rompimento com os costumes burgueses relativos, principalmente, a formação da família, relações amorosas, alimentação, e maneiras de educar uma criança. Inventavam uma vida livre no presente e, com isso, elaboravam uma nova moral da igualdade e da liberdade, baseadas na ação direta (...) e no rompimento com o princípio da representação.” No entanto, os anarquistas de hoje não têm conseguido dar conta de criar esses espaços ao ficar apenas no nível do denuncismo, bem como na falta de uma integração de suas iniciativas à vida cotidiana, para além de grupelhos de fim de semana e sites na internet.

Adotando esses princípios, temos que atuar, hoje, em dimensões antes tidas como convencionais, e que agora se postam como centrais na construção de uma realidade mais democrática. Nesse sentido, penso na questão do ‘Trabalho’, já bastante discutido aqui no C.I.S.C.O.: é dever da prática anarquistas/libertária agir no sentido de re-significar essa noção. Isso se daria por meio da mobilização em diferentes correntes: defesa dos direitos trabalhistas (apesar das várias críticas que podemos tecer sobre estes, considero que ainda é melhor do que nada, como pretendem muitos hoje), associações de desempregados visando constituição de redes de economia solidária e cooperativas, fortalecimento dos movimentos sociais que pressionam os Estados no sentido de aumentar a participação popular nas decisões da política econômica entre outras áreas, incentivo ao municipalismo, libertário ou não, etc.

Penso que, por esse caminho, fica mais clara uma saída para a difícil tarefa de unir local e global sem, no entanto, cair nas falácias do localismo estremado ou, por outro lado, permanecer nas nuvens esperando por uma hegemonia que nunca vem. Lembrando que, no entanto, todas as frentes de luta são válidas.

A despeito disso, muitos se perguntam sobre a questão da ‘passividade’ de grande parte das pessoas. E concordo que esse seja um ponto fulcral para se pensar os movimentos sociais e a democracia atualmente. Apesar dos absurdos que constatamos diariamente, porque a falta de envolvimento geral com as questões de natureza pública? No próximo post tentarei fazer algumas reflexões sobre o assunto.

*-*-*

PS: A produção desse texto contou com inspiração, entre outras fontes, dessa entrevista do Prof. Edson Passetti. Apropriei-me de alguns conceitos e análises, no entanto certas opiniões encontraram caminhos divergentes.

2 comentários:

  1. Inspirado, hein?!
    No fim das contas, somos defensores dos mesmos princípios... Gostei do texto!

    ResponderExcluir
  2. Já toda a gente chegou à conclusão que alguma coisa se perdeu pelo caminho desde o aparecimento do anarquismo como movimento social: a ligação ao resto da população. Fomos atirados para o gueto e o que podemos fazer é o denuncismo, porque somos poucos e as nossas ideias não penetram da mesma forma que antigamente.

    Por outro lado, os últimos anos viram um ressurgimento com alguma força da influência anarquista, nomeadamente nos movimentos anti-globalização e no insurreccionalismo.

    Temos de ver que as más experiências do socialismo real também nos pesam a nós. E que a sociedade da superabundância no mundo industrializado é um forte desincentivo à revolta.

    Concordo que devemos pegar na ideia de democracia e utiliza-la a nosso favor. Insistir em levar a democracia mais longe, até à democracia directa.

    Bom texto.
    Cumprimentos libertários

    ResponderExcluir