No período em que o C.I.S.C.O. se reunia concreta e freqüentemente, sem dúvida alguma, o tema que mais gerava polêmica dizia respeito ao que hoje pretendo abordar aqui; na verdade, já com um certo atraso, dado que consiste num aspecto central do nosso coletivo e, julgamos nós, num elemento indispensável para pensar o anarquismo para além de um mero discurso crítico, mas sim como algo palpável e que procure enfrentar e participar, de alguma forma, da chamada Real Politik sem, no entanto, perder de vistas suas propostas e princípios. Desse modo, em primeiro lugar, vejamos o dilema apresentado por Chomsky e, num segundo momento, em que medida a proposta pragmática poderia ajudar.
Em conhecido texto, “Metas e Projetos”, publicado aqui no Brasil pela Editora Imaginário, o lingüista e anarquista Noam Chomsky trata de estabelecer um interessante parâmetro de análise para se pensar as práticas anarquistas hoje. Segundo ele, e aqui ele vai ao encontro do argumento pragmatista, deveríamos pautar nossas ações por suas conseqüências no nível prático, real, e não tendo por base princípios ou coerência filosófica.
Assim defini Chomsky a relação entre Metas e Projetos: “Por projetos, eu quero dizer a concepção de uma sociedade futura, que inspire o que realmente fazemos, uma sociedade na qual um ser humano respeitável gostaria de viver. Por metas, eu quero dizer a escolha das tarefas que estão ao nosso alcance, e iremos seguir um caminho ou outro guiados por um projeto que pode estar distante e não ser muito bem acabado”
Grande parte das nossas decisões são tomadas com base nas experiências, medos e desejos que guardamos em nosso íntimo. Essas escolhas implicam em conseqüências humanas diretas, de modo que devemos, se nos consideramos agentes morais, ser cautelosos na definição e estabelecimento de nossas metas e projetos. Um slogan, um projeto de paraíso ou a crítica pela crítica são cômodos, mas igualmente vazios, para não dizer perigosos, se não consideramos os impactos humanos dessas tomadas de decisões.
Isso coloca cada um no centro de um drama moral, pois se levarmos isso em consideração, perceberemos que, constantemente, no dia-a-dia, as metas acabam se mostrando contrárias aos nossos projetos. E, para o autor, isso deve ser visto como algo normal e aceitável. E não digo isso apenas no âmbito da filosofia libertária, mas é algo comum em todo espectro político – tanto é que vivemos cobrando a falta de coerência dos partidos políticos (Ok, ok! No caso dos partidos no Brasil a questão é bem mais complexa!)
Avançando nos argumentos de Chomsky, ele coloca que, em função disso, aí já tratando especificamente do caso dos libertários, deveríamos hoje apoiar ações que, filosoficamente, não apoiaríamos. Em tese, a maior parte das propostas libertárias / anarquistas prezam pela destruição do Estado, mas será viável levar isso à sério num momento como o atual? E os impactos humanos disso em face a um avanço das tiranias privadas? Como apelar por um recuo dos poderes estatais? Em suma, a despeito dos nossos projetos, quais devem ser as nossas metas agora? Lembrando que se não considerarmos os dilemas presentes na Real Politik, corremos o sério risco de permanecermos como um grupo sem vínculo com o real e que, por isso, acaba não oferecendo alternativas para o que está aí. E, convenhamos, esse tipo de postura, historicamente, está / esteve presente em algumas correntes da filosofia libertária.
Então Chomsky conclui: “Minhas metas de curto prazo são defender e até mesmo reforçar elementos de autoridade do Estado que embora sejam ilegítimos de maneira fundamental, são decisivamente necessários nestes momentos para impedir os esforços dedicados a atacar os progressos que foram conseguidos na extensão da democracia e dos direitos humanos. A autoridade do estado está agora sob severo ataque nas sociedades mais democráticas, mas não por ela conflitar com o projeto libertário. Justamente o oposto: porque ela oferece (fraca) proteção a alguns aspectos desse projeto. Os governos têm uma importante falha: ao contrário das tiranias privadas, as instituições de poder e autoridade do Estado oferecem ao desprezado público uma oportunidade de desempenhar algum papel, mesmo que limitado, na gestão de seus próprios assuntos.”
Na verdade, nem sei se concordo com Chomsky quando diz que o Estado está sob ataque das tiranias privadas (multinacionais, bancos e grandes poderes econômicos em geral); na medida em que acho mais viável falar que o poder desse Estado, em geral, tem atendido aos interesses dessas tiranias. Afinal de contas, estamos cansados de saber que o “neo-liberalismo”, como bem manda a teoria, nunca existiu – caso contrário, os bancos, agora com essa crise, não deveriam estar ganhando bilhões em verbas públicas, que estão sendo transferidas para os seus cofres. No final das contas, souberam ser bastante pragmáticos – no sentido medíocre da palavra.
O problema dos fundamentalismos filosóficos é que, sempre que vamos abordar uma realidade qualquer a partir deles, já temos as respostas de antemão, de modo que as conseqüências disso são postas em segundo plano em favor de uma certa coerência ideológica. Quanto falo em trazer o pragmatismo para o contexto da prática libertária, é justamente o contrário que desejo fazer, ou seja, analisar cada situação na sua particularidade para, depois, dentro de uma esteira ética (humanista e que considera o médio e o longo prazos), assumir posturas ou adotar determinadas práticas. Se o que faço agora pode prejudicar a integralidade das minhas idéias, dane-se! Afinal de contas, não podemos estabelecer uma linha de continuidade direta entre nossas posturas filosóficas e as posturas políticas pois, nesse caso, estaríamos a um passo do Nazismo ou do Stalinismo; bem como, até, longe de sermos levados a sério dentro do escopo político atual. Sendo nada mais do que moralistas que só criticam e propõem idéias inviáveis de serem consideradas no momento. Pois num momento de extrema insegurança (desemprego, fim da seguridade etc.), pedir pra que as pessoas abram mão do Estado, não passa de puro cinismo e imoralidade.
Nesse sentido, em texto sobre “anarquia pragmática”, o Site Artigonal, coloca: “o pragmatismo pode ser inspirador, pois ele nega as verdades universais e considera apenas aquilo que funciona, temporariamente e localmente.”
Dessa forma, o discurso dos anarquistas deveria ser não mais narrativas grandiloqüentes acerca da libertação das classes oprimidas rumo ao mundo da liberdade (e felizmente os libertários estão, em grande parte, superando isso). Mas sim, o apoio ao reforço de uma gama de elementos específicos dos poderes estatais, sobretudo os que dizem respeito aos direitos humanos, sociais, políticos e civis – sem, no entanto, para de criticar e agir no sentido de destruir essa mesma autoridade, indo além dela: redes de economia solidária, defesa radical do Copyleft, criação de cooperativas visando seguridade social e etc. Isso pressupões mais força para os movimentos sociais, mais espaço pro povo atuar nas políticas econômicas, mais referendos e plebiscitos, mais mecanismos de participação direta e etc. Quando falo em reforçar elementos de autoridade do Estado, é nisso que penso, em elementos que se justificam, e não quaisquer elementos!
Enfim, devemos convencer as pessoas de que a vida anárquica é muito mais do que um “bom emprego” e a perspectiva de consumir infinitamente. Temos que conseguir mostrar que a democracia como se mostra hoje, novamente por meio de discursos de “fim da história” (com uma leve pausa por conta da atual crise), não consiste no que de melhor a humanidade pode criar. E, para isso, a filosofia pragmatista, que nasceu nas raízes da frutífera tradição democrática norte-americana (lá com aqueles liberais de base que andam tão esquecidos), pode em muito nos ajudar.
O Estado (democrático ou não) oferece às pessoas uma seguridade mínima que, até hoje, ninguém criou coisa melhor dentro da tradição ocidental. E ninguém vai abrir mão disso sem um horizonte minimamente palpável e viável. Tanto que, e falo isso por mim, apesar de me considerar um libertário, estou louco pra passar num concurso público. Por isso devemos ser pragmáticos, pensar em melhorias no mundo do trabalho e do consumo, criando redes e mais redes de cooperação, federações de cooperativas que possam, agora sim, propiciar projetos de mudança que tenham um respaldo ético e humano por trás de si.
Saiba mais:
O que é pragmatismo – artigo que explica de forma simplificada essa filosofia
Relação entre Política e Filosofia
Saúde e Anarquia pra Todos!!
Discussão polêmica e difícil essa...
ResponderExcluirMas aqui arrisco o meu pitaco...
Penso que há um outro olhar possível para o debate aqui proposto. Esse parte, antes de tudo, de um questionamento sobre o que vem a ser a proposta libertária.
No meu entendimento, os discursos anarquistas, há muito, pecam em suas formulações. Tal situação, inclusive, faz com que eles sejam atacados por inúmeras das correntes que se dizem mais aptas à ação.
Isso porque, em grande medida, os anarquismos se apresentam como crítica. Suas proposições partem sempre do se colocar contra algo. Em certa medida, para alguns, é a negação do Estado que unifica as diferentes linhas dentro desse espectro de pensamento.
Tenho, particularmente, uma leitura diferente da tradição libertária e vejo, ainda que, inegavelmente os discursos anarquistas sempre mobilizem a crítica, uma proposta comum, que passa pela construção de uma sociedade autônoma e livre, capaz de se desvencilhar dos poderes do estado e do capital.
Nessa medida, lendo a proposta libertária por seu lado positivo, por sua defesa de um fortalecimento da sociedade, fazendo-a cada vez mais autônoma, tenho um outro entendimento do debate sobre metas e projetos.
Que o Estado, no atual contexto, apesar dos pesares, garante uma segurança mínima a muitos é inegável.
Mas que esses avanços só se sustentam com uma sociedade civil forte também o é.
Sendo assim, há dois caminhos passiveis para sustentação de um mesmo benefício.
Ou se defende o aparelho de bem estar do Estado dos poderes e do pensamento coorporativos ou, via sociedade civil organizada, se constrói mecanismos para frear o avanço da lógica do desmonte da seguridade social, que tanto quer o Capital, e do ataque ao interesse comum.
Sou pela segunda opção. Acredito que fortalecer os grupos de pressão social se faz mais frutífero e mais coerente com a proposta libertária... e para quem dúvida da força desses grupos, é só ver o que causou mais impacto sobre o avanço da industria pecuária na Amazônia... as ações do Estado ou o documento do Greenpeace?
Sendo assim, creio que metas e projetos devem se aliar com um calculo que entrelace coerência com as tradição à qual se filia, não por puritanismo, mas pelo reconhecimemto que esse patrimônio comum fortalece os diferentes grupos em torno de uma mesma luta; com a conjuntura atual, reconhecendo o crescente papel da entidades civis e a importância dessas como fornecedoras de fórmulas capazes de superar o modelo coorporativo e todos os valores que a ele se ligam; e, por fim, por entender que é por meio de sua própria organização que a sociedade se faz autônoma e realmente livre, sendo capaz de assumir as rédeas de um projeto mais libertário de futuro.
"Que o Estado (...) apesar dos pesares, garante uma segurança mínima a muitos é inegável.
ResponderExcluirMas que esses avanços só se sustentam com uma sociedade civil forte também o é.(...)
Ou se defende o aparelho de bem estar do Estado dos poderes e do pensamento coorporativos ou, via sociedade civil organizada, se constrói mecanismos para frear o avanço da lógica do desmonte da seguridade social, que tanto quer o Capital, e do ataque ao interesse comum."
Muito bom esse tercho do seu comentário! Acho que equacionou bem qual é o ponto em específico gerador da polêmica e, juntamente de ti, sou pela segunda proposta.
Mas queria acrescentar uma coisa. O exercício do fazer polítca é algo cotidiano, de forma que, e creio que aqui você concorda comigo, cada caso, cada situação, deve ser analisado particularmente a fim de que, depois, assumamos uma postura de apoio ou não e etc.
O problema, quanto ao esquacionamento que fez, que, creio eu, funciona muito bem, é que, infelizmente, não é passível de ter a sua trasnparência no dia-a-dia.
Um exemplo dentre milhares possíveis: Ontem, um carro de uma equipe do Ibama que fazia inspeção em fazendas de pecuaristas e frigoríficos foi incendiado numa cidade em Rondônia - isso depois da mesma equipe ter recebido uma carta os ameaçando caso não parassem com as multas.
Então...nesse caso, nada nos resta, a curto prazo, a não ser fortalecer o aparato jurídico e policial no local (e aqui estaríamos escolhendo a sua primeira opção). Na impossibilidade (legal e política) de fazer uma reforma agrária, viablizar a agricultura familiar etc., via estado mesmo, só poderíamos apoiar a sociedade civil fortalecendo o aparato epressor do estado.
Estou contigo, mas infelizmente,o que quero dizer com esse texto, é que devemos ser muito mais flexíveis em relação à nossa filosofia do que desejaríamos. É uma obrigação moral e ética nossa!
Lenha!!