5) O NECESSÁRIO DESLOCAMENTO ÉTICO
Sejamos diretos! Enquanto não for solucionada, ou pelo menos amenizada, a questão da desigualdade (social, de acesso ao poder político, à saúde, à justiça, à educação etc.), falar em abolicionismo penal é utopia! De modo que, realizar uma transformação radical como essa pressupõe passar por etapas, sob o risco de, se assim não fizermos, não diria que a situação pioraria, pois creio que isso é impossível, mas perderíamos um precioso tempo e, no final das contas, voltaríamos ao ponto inicial.
No entanto, a principal desigualdade a ser combatida, necessária ao controle da violência (violência aqui diz respeito não apenas aos “crimes contra a classe média”, mas sim toda a violência produzida pelo Sistema Penal) está no comportamento de cada um de nós. Enquanto não for superada a questão que pensa o campo da ética apenas no nível do Nós X Eles, a situação permanecerá anos-luz de alguma melhora.
Esse raciocínio, a princípio, nada tem de ofensivo, mas é justamente ele que possibilita pensamentos do tipo: “eu sou um cidadão ordeiro e trabalhador, que paga os impostos em dia. Logo, o vagabundo da esquina, o favelado ou o ladrão, não devem gozar dos mesmos direitos que eu”. Ou como diz um slogan nojento de um certo Movimento de Repúdio aos Direitos Humanos para Todos: “Direitos Humanos para Humanos Direitos”...ou seja, aqui estamos apenas a um passo das câmaras de gás.
A questão é que essa relação maniqueísta, Nós X Eles, não existe na realidade, mas apenas numa perspectiva ideológica específica, no caso, essa do liberalismo tal qual praticado desde princípios do século XX e intensificada nos últimos quarenta anos. A questão é que levamos a sério demais aquele popular jargão dos liberais clássicos: “A liberdade de um acaba onde começa a do outro” mas, se pensarmos bem, e nos lembrarmos que somos animais culturais, sociais e que vivemos todos numa complexa relação de interdependência, a coisa muda de figura. Sobretudo numa sociedade globalizada como a nossa, onde nunca fomos tão próximos, continuamos insistindo, e sofrendo por conta disso, na idéia do EU aqui e VOCÊ aí. Devemos inverter o princípio clássico do liberalismo e pensar que, na verdade “Liberdade de um consisti na continuidade da liberdade do próximo”.
Dessa forma, se não sou livre, você não pode sê-lo também. Em outras palavras, temos que perceber que vivemos numa ilusão, no sentido de que, sem que todos sejam igualmente livres, tampouco seremos – e vemos isso de forma cada vez mais incisiva por meio da escalada da violência, das redes de vigilância, de nosso encarceramento “voluntário” dentro de casa, dos carros blindados, do fato de não podermos “gozar” de nossos bens...não é disso que as classes ricas tanto reclamam?
Quer um exemplo prático? Pois vamos lá. Deixando o cinismo de lado, sabemos que a prática de crimes não é prioridade das classes pobres; mas sabemos também que, quando por ela praticada, o clamor social em prol de penas mais severas e pela desconsideração da humanidade do envolvido é muito mais alta. No melhor das hipóteses, defende-se o uso de medidas de reintegração como cursos, trabalho forçado e coisas do gênero. Agora, desde quando medidas desse tipo, voltadas pra um público que vive condições inacreditáveis de desigualdade e falta de perspectivas, ou de mínimo respeito por parte da sociedade e dos poderes públicos vai funcionar? Tudo que oferecemos a eles é uma reintegração submissa e indigna a sociedade de consumo, e com isso esperamos “civilizar” o “Eles” – portando a consciência mais limpa do mundo: “Eu pago meus impostos e sou um trabalhador honesto!”.
Carlos Magalhães (de onde tiro grande parte desse raciocínio que ora exponho), coloca muito bem: “Desde quando cursos profissionalizantes para jovens de classe baixa oferecem uma real alternativa de ascensão social? Oferecem apenas a possibilidade da resignação a uma função desprestigiada e mal remunerada. Por que alguém tem que aceitar essa oferta? Por que é o destino? (...) O fato é que, se deixamos de lado o pensamento moralizante, acabamos por perceber que a pergunta tem de ser invertida. A questão não é ‘por que há jovens pobres envolvidos com o crime’. A pergunta honesta é ‘por que são tão poucos?’. ‘Por que a maioria ainda escolhe a resignação?’.” Ou seja, pelo andar da carruagem, com o aumento da desigualdade, a violência só tende a aumentar, à contragosto da inflação das medidas punitivas – até porque o crime acaba oferecendo a esse jovem em “situação de risco” maiores possibilidades de ser respeitado, reconhecido e de ascensão social mesmo.
Voltando à questão ética, Magalhães coloca: “...a oposição ‘NÓS X ELES’ definidora do ponto de vista ‘ocidental’ que indica a necessidade de levar aos incivilizados as preciosas realizações inscritas nas declarações internacionais de direitos se repete no interior da sociedade brasileira cada vez mais cindida em partes irreconciliáveis. O nosso ‘NÓS X ELES’ particular opõe a ‘elite’ (na falta de palavra melhor) aos subalternos (em geral moradores das ‘favelas’).” Então, a partir disso, concluímos seguramente que o problema são com ELES, com a favela, que serve aqui de bode expiatório! Dado que são o refugo, a parte do projeto da modernidade que não deu certo, devem ser esquecidos. Chega-se ao cúmulo de afirmar que o problema de tudo são os pobres!!
O ponto é que não existe NÓS e ELES, mas tão somente NÓS. É a nossa realidade social, somos produtos e produtores disso! Somos todos responsáveis por isso. Paremos de analisar somente o criminoso (por favor, não quero aqui eximir o peso que o indivíduo tem no ato do crime, até porque, no final das contas, quem puxa o gatilho é ele, mas quanto a isso podemos fazer pouca coisa. Nos resta pensar a partir de um perspectiva pública), e passemos a analisar o crime: por que tanta penalização? Por que tanta desigualdade? Por que ver o mundo numa lógica maniqueísta? São essas as fábricas da marginalidade!!
A fim de concluir esse aspecto, volto a citar um trecho do excelente texto de Magalhães, sobre o fundamento ético que conhecemos, “Em termos de ‘NÓS X ELES’ nunca haverá solução possível. Porque, desse ponto de vista, a única possibilidade seria a eliminação (eliminação cultural ou física, ou ambas) de uma das partes. (...) A verdadeira solução exige o reconhecimento de um nós sem eles, um nós integral. Os problemas são nossos e não deles, pois eles são parte do nós. (...) somos todos violadores dos direitos humanos. (...) o ‘traficante’ do morro e suas armas de grosso calibre não existiriam sem a cumplicidade de ‘pessoas de bem’. (...) A mesma pessoa que aprova o ‘modelo Capitão Nascimento’ de operações em favelas quer uma lei suficientemente elástica para que seus negócios não muito lícitos sejam possíveis. A lógica do ‘NÓS X ELES’ prospera porque abriga o argumento de que ‘eles’, ‘infelizmente’, terão que se resignar às posições subalternas, pois esse é o seu destino. Mas por que uma parte dos brasileiros tem de se contentar com as sobras? Não tem. Simplesmente não tem.”
Em outras palavras, antes de falarmos em reforma ou destruição do Sistema Penal, temos que re-fundar nossa noção de espaço público; e assim, assumir uma série de responsabilidades que, por meio de medidas sutilezas burocráticas e legais, como pagar impostos, votar, ou ser um trabalhador honesto, esforçado e orgulhoso de si, nos eximimos cinicamente.
6) A PRÁTICA DO ABOLICIONISMO PENAL
Sim, assumo que parece maluquice. Na primeira vez em que ouvi falar de Abolicionismo Penal, a coisa simplesmente não entrava na cabeça: “Mas como assim”?! O fato é que a idéia do Abolicionismo Penal assusta; aliás, como toda ruptura radical com paradigmas ampla e tradicionalmente aceitos. Os abolicionistas, bem como os minimalistas, redimensionam todo o sistema de justiça, bem como o próprio conceito desta – isso porque eles rompem com a lógica maniqueísta que compõe o mais íntimo de nossas identidades e valores morais. O Abolicionismo é, por excelência, a filosofia anarquista aplicada à prática: ou seja, ele vem pulverizar e destruir aquilo que, no nosso intimo, sabemos que está errado mas não queremos enfrentar de frente – pois optamos pelo mais cômodo.
Então, o primeiro passo é romper noções morais tradicionais, por meio do exercício ético (isso tanto no âmbito privado quanto público), e gerar deslocamentos radicais de percepção do mundo à nossa volta. Mas alguns diriam que isso levaria décadas, talvez séculos! Na verdade não, e é Louk Hulsman quem fala bem disse em entrevista (Revista Verve) no qual foi perguntado sobre esse assunto:
“Todos nós tivemos esta experiência! (de conversão) Em primeiro lugar, através da história, sabemos que todas as civilizações viveram de acordo com ordenamentos e expressaram visões que, hoje, são totalmente incompreensíveis. Como se pôde acreditar nas bruxas e acreditar ainda que, queimando-as, se poderia evitar toda sorte de catástrofes? (...) e se poderia dizer que tais crenças desapareceram gradualmente. Mas é possível citar outros exemplos mais próximos de nós e que evocam reviravoltas espetaculares: a abolição da escravatura e a proibição de castigos corporais nas escolas, pondo fim, subitamente, a práticas que não compreendemos mais não só como podiam ser aceitas, mas sobretudo como podiam ser desejadas ao nível dos princípios. (...). Outros exemplos paradigmáticos são bastante atuais: a desvalorização dos ritualismos religiosos, a reviravolta no papel da mulher, a percepção sobre a homossexualidade e as drogas, o sexo etc.
Situação interessante pra pensar sobre isso seria, por exemplo,a diferença numérica absurda entre a população carcerária norte-americana e do resto do mundo. Por que isso acontece, pelo fato dos americanos serem um povo criminoso? Claro que não, mas sim devido às diferenças sócio-econômicas e culturais específicas e, principalmente, pela diferente forma de reagir e entender o “crime”.
Enfim, tal deslocamento pode, e deve, ser levado à cabo no âmbito das questões relativa à violência, ao crime, à noção de espaço público e de funcionamento das instituições políticas e econômicas atuais. Há pesquisas que mostram que grande parte dos fatos criminalizáveis, não são vividos de forma traumática se comparado com uma série de outros fatos corriqueiros de nossa vida, de modo que acabam sendo vistos como problemas comuns. Inclusive, a baixa procura que há (em termos proporcionais), pra se resolver “crimes” no âmbito da justiça penal, simboliza justamente o fato de que esse, nem sempre, é visto como o melhor caminho pra solucionar a questão.
Negrão evidencia que: “Quando o sistema penal se apropria de um assunto, ele o congela, de modo que jamais será interpretado de forma diferente da que foi no início. O sistema penal ignora totalmente o caráter evolutivo das experiências interiores. Assim, o que se apresenta perante o tribunal, no fundo nada tem a ver com o que vivem e pensam os protagonistas no dia do julgamento. Neste sentido, pode-se dizer que o sistema penal trata de problemas que não existem.”
Aprendemos na escola que tudo à nossa volta funciona numa perspectiva voluntarista (no sentido de que é só querer e ter vontade política que as coisas acontecem). Aliás, a glorificação do sistema democrático como conhecemos, apela justamente pra esse argumento (soberania e vontade populares), sendo que, na verdade, sabemos que não é só votando a cada quatro anos, por “melhor” que escolhamos nossos representantes, é que as coisas vão mudar. A representatividade e a burocracia demolem o voluntarismo e a intencionalidade do cidadão que, existe sim, mas só numa relação cara-a-cara, direta, onde agimos por conta própria e vemos o resultado dessa ação. Quanto ao voto, ou ao processo perpetrado na justiça, esses escapam de nosso controle e perdem o interesse ou um necessário esforço reflexivo sobre a sua mudança necessária. Entra aqui a proposta abolicionista.
De acordo com Edson Passeti: “O abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na ruína da cultura punitiva da vingança, do ressentimento, do julgamento e da prisão. Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sistema penal moderno, os efeitos da naturalização do castigo, a universalidade do direito penal, e a ineficácia das prisões (...), e opera fora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação geral das penas, para lidar com a infração como situação-problema, considerando cada caso como singularidade”
Nesse contexto, as práticas abolicionistas visam trazer de volta para a sociedade, para vítima e o sujeito do “crime”, o direito de resolverem, de foram satisfatória, a “situação-problema” em questão. Voltando a Passeti (Revista Verve), ele coloca que os abolicionistas lidam com “situações-problemas e não com crimes, com pessoas e não procedimentos, com acasos, tragédias e desassossegos em busca de uma solução anti-autoritária, anti-penalizadora”. Aqui não existe a preocupação normativista de enquadrar e rotular situações dentro de categorias estanques e deslocadas, no espaço e no tempo, próprias dos códigos penais mundo afora.
O Abolicionismo é muito conveniente em vista dos problemas que passamos na atualidade. Ele procura reforçar laços de solidariedade extremamente desgastados por meio da valorização do diálogo e do encontro entre o ‘NÓS’ e o ‘ELES’, a fim de dissolver essa perspectiva ética que vem nos arruinando – ou seja, funciona como uma ótima arma contra o processo de dicotomização, atomização e discriminação que o sistema reproduz. A preocupação dos abolicionistas é resolver as contendas sociais sem gerar mais violência,a fim de diminuir a ocorrência daquelas. Visa-se o incremento da cidadania de ambas as partes: vítima e sujeito – o que, atualmente, é justamente negado pela prática do direito penal simbólico e pelo sistema carcerário, que acabam aumentando, ainda mais, os crimes.
O Abolicionismo, de acordo com Roberta Negrão: “Propõe a criação de microorganismos sociais baseados na solidariedade e fraternidade, objetivando a reapropriação social dos conflitos entre agressores e ofendidos, e a criação espontânea de métodos ou formas de composição. (...) As alternativas utilizadas para dirimir os conflitos sociais existentes, e com os quais nos deparamos diariamente, deve permitir a flexibilidade em sua utilização. Todas as medidas utilizadas para solucionar os problemas precisam adaptar-se à realidade dos envolvidos, visto cada fato ter sua dinâmica própria. A justiça penal deverá tornar-se totalmente não-legal, deixando que os próprios envolvidos encontrem solução para as situações problemáticas, o que já acontece em muitos momentos, nos casos em que o sistema legal existente não consegue abraçar muitos dos delitos cometidos em nossa sociedade.”. Uma iniciativa interessante nesse sentido, é a criação de Cooperativas de Justiça, que funcionaria da mesma forma como se dá com quaisquer outras cooperativas.
É mais uma vez Passeti quem sintetiza bem a idéias: “O abolicionista trata cada caso como algo especial, como situação-problema e não crime ou infração. Procura compreender a situação dos envolvidos, algozes e vítimas, tomando partido de ambos. Anti-universalista, reconhece a verdade em cada parte e busca a solução pelo lado de fora, o da conciliação capaz de propiciar uma resposta-percurso que evita a prisão e, ao mesmo tempo, incentiva a indenização. Uma resposta-percurso que não se transforma em modelo, que é avessa à filantropia, que não seqüestra a palavra ou as vontades das partes, não as submetem a autoridades superiores de juízes, promotores, advogados, técnicos de humanidades, lideranças, etc. e tal. Promove, isso sim, uma conversação entre envolvidos e pessoas diretamente relacionadas ao caso, autoridades despojadas de seu poder universalizador de julgar.”
E voltando a Negrão: “A proposta abolicionista é promover um encontro entre os envolvidos, valorizando especialmente a expectativa do ofendido (...) Assim, a vítima sentir-se-ia mais justiçada, pois ela própria decidiu o que aceitar como reparação (moral ou material), e o delinqüente teria maior chance de avaliar seu ato e reeducar-se, frente as conseqüências que podem fazê-lo refletir e não despertam um sentimento de injustiça e vingança em seu âmago.”
Em outras palavras, o abolicionismo tem a pretensão, nada humilde, sejamos francos, mas não por isso utópica, de democratizar, de fato, para além desse simulacro de Democracia que vivemos, as relações sociais em todos os seus níveis.
Agradeço a paciência!
Saúde a Anarquia pra todos!
Informe-se mais:
Revista Verve
Entrevista com um dos criminologistas críticos mais ativos no Brasil
Entrevista com o criminologista Sebastian Scheerer
Brasileiros e Direitos Humanos
Texto de Roberta Negrão
Texto Edson Passeti sobre Abolicionismo Penal
Projeto de Lei prevê mais rigor contra drogas
Criminalização dos downloads via P2P no Brasil
Enquête no Site do Senado sobre maioridade penal
Sejamos diretos! Enquanto não for solucionada, ou pelo menos amenizada, a questão da desigualdade (social, de acesso ao poder político, à saúde, à justiça, à educação etc.), falar em abolicionismo penal é utopia! De modo que, realizar uma transformação radical como essa pressupõe passar por etapas, sob o risco de, se assim não fizermos, não diria que a situação pioraria, pois creio que isso é impossível, mas perderíamos um precioso tempo e, no final das contas, voltaríamos ao ponto inicial.
No entanto, a principal desigualdade a ser combatida, necessária ao controle da violência (violência aqui diz respeito não apenas aos “crimes contra a classe média”, mas sim toda a violência produzida pelo Sistema Penal) está no comportamento de cada um de nós. Enquanto não for superada a questão que pensa o campo da ética apenas no nível do Nós X Eles, a situação permanecerá anos-luz de alguma melhora.
Esse raciocínio, a princípio, nada tem de ofensivo, mas é justamente ele que possibilita pensamentos do tipo: “eu sou um cidadão ordeiro e trabalhador, que paga os impostos em dia. Logo, o vagabundo da esquina, o favelado ou o ladrão, não devem gozar dos mesmos direitos que eu”. Ou como diz um slogan nojento de um certo Movimento de Repúdio aos Direitos Humanos para Todos: “Direitos Humanos para Humanos Direitos”...ou seja, aqui estamos apenas a um passo das câmaras de gás.
A questão é que essa relação maniqueísta, Nós X Eles, não existe na realidade, mas apenas numa perspectiva ideológica específica, no caso, essa do liberalismo tal qual praticado desde princípios do século XX e intensificada nos últimos quarenta anos. A questão é que levamos a sério demais aquele popular jargão dos liberais clássicos: “A liberdade de um acaba onde começa a do outro” mas, se pensarmos bem, e nos lembrarmos que somos animais culturais, sociais e que vivemos todos numa complexa relação de interdependência, a coisa muda de figura. Sobretudo numa sociedade globalizada como a nossa, onde nunca fomos tão próximos, continuamos insistindo, e sofrendo por conta disso, na idéia do EU aqui e VOCÊ aí. Devemos inverter o princípio clássico do liberalismo e pensar que, na verdade “Liberdade de um consisti na continuidade da liberdade do próximo”.
Dessa forma, se não sou livre, você não pode sê-lo também. Em outras palavras, temos que perceber que vivemos numa ilusão, no sentido de que, sem que todos sejam igualmente livres, tampouco seremos – e vemos isso de forma cada vez mais incisiva por meio da escalada da violência, das redes de vigilância, de nosso encarceramento “voluntário” dentro de casa, dos carros blindados, do fato de não podermos “gozar” de nossos bens...não é disso que as classes ricas tanto reclamam?
Quer um exemplo prático? Pois vamos lá. Deixando o cinismo de lado, sabemos que a prática de crimes não é prioridade das classes pobres; mas sabemos também que, quando por ela praticada, o clamor social em prol de penas mais severas e pela desconsideração da humanidade do envolvido é muito mais alta. No melhor das hipóteses, defende-se o uso de medidas de reintegração como cursos, trabalho forçado e coisas do gênero. Agora, desde quando medidas desse tipo, voltadas pra um público que vive condições inacreditáveis de desigualdade e falta de perspectivas, ou de mínimo respeito por parte da sociedade e dos poderes públicos vai funcionar? Tudo que oferecemos a eles é uma reintegração submissa e indigna a sociedade de consumo, e com isso esperamos “civilizar” o “Eles” – portando a consciência mais limpa do mundo: “Eu pago meus impostos e sou um trabalhador honesto!”.
Carlos Magalhães (de onde tiro grande parte desse raciocínio que ora exponho), coloca muito bem: “Desde quando cursos profissionalizantes para jovens de classe baixa oferecem uma real alternativa de ascensão social? Oferecem apenas a possibilidade da resignação a uma função desprestigiada e mal remunerada. Por que alguém tem que aceitar essa oferta? Por que é o destino? (...) O fato é que, se deixamos de lado o pensamento moralizante, acabamos por perceber que a pergunta tem de ser invertida. A questão não é ‘por que há jovens pobres envolvidos com o crime’. A pergunta honesta é ‘por que são tão poucos?’. ‘Por que a maioria ainda escolhe a resignação?’.” Ou seja, pelo andar da carruagem, com o aumento da desigualdade, a violência só tende a aumentar, à contragosto da inflação das medidas punitivas – até porque o crime acaba oferecendo a esse jovem em “situação de risco” maiores possibilidades de ser respeitado, reconhecido e de ascensão social mesmo.
Voltando à questão ética, Magalhães coloca: “...a oposição ‘NÓS X ELES’ definidora do ponto de vista ‘ocidental’ que indica a necessidade de levar aos incivilizados as preciosas realizações inscritas nas declarações internacionais de direitos se repete no interior da sociedade brasileira cada vez mais cindida em partes irreconciliáveis. O nosso ‘NÓS X ELES’ particular opõe a ‘elite’ (na falta de palavra melhor) aos subalternos (em geral moradores das ‘favelas’).” Então, a partir disso, concluímos seguramente que o problema são com ELES, com a favela, que serve aqui de bode expiatório! Dado que são o refugo, a parte do projeto da modernidade que não deu certo, devem ser esquecidos. Chega-se ao cúmulo de afirmar que o problema de tudo são os pobres!!
O ponto é que não existe NÓS e ELES, mas tão somente NÓS. É a nossa realidade social, somos produtos e produtores disso! Somos todos responsáveis por isso. Paremos de analisar somente o criminoso (por favor, não quero aqui eximir o peso que o indivíduo tem no ato do crime, até porque, no final das contas, quem puxa o gatilho é ele, mas quanto a isso podemos fazer pouca coisa. Nos resta pensar a partir de um perspectiva pública), e passemos a analisar o crime: por que tanta penalização? Por que tanta desigualdade? Por que ver o mundo numa lógica maniqueísta? São essas as fábricas da marginalidade!!
A fim de concluir esse aspecto, volto a citar um trecho do excelente texto de Magalhães, sobre o fundamento ético que conhecemos, “Em termos de ‘NÓS X ELES’ nunca haverá solução possível. Porque, desse ponto de vista, a única possibilidade seria a eliminação (eliminação cultural ou física, ou ambas) de uma das partes. (...) A verdadeira solução exige o reconhecimento de um nós sem eles, um nós integral. Os problemas são nossos e não deles, pois eles são parte do nós. (...) somos todos violadores dos direitos humanos. (...) o ‘traficante’ do morro e suas armas de grosso calibre não existiriam sem a cumplicidade de ‘pessoas de bem’. (...) A mesma pessoa que aprova o ‘modelo Capitão Nascimento’ de operações em favelas quer uma lei suficientemente elástica para que seus negócios não muito lícitos sejam possíveis. A lógica do ‘NÓS X ELES’ prospera porque abriga o argumento de que ‘eles’, ‘infelizmente’, terão que se resignar às posições subalternas, pois esse é o seu destino. Mas por que uma parte dos brasileiros tem de se contentar com as sobras? Não tem. Simplesmente não tem.”
Em outras palavras, antes de falarmos em reforma ou destruição do Sistema Penal, temos que re-fundar nossa noção de espaço público; e assim, assumir uma série de responsabilidades que, por meio de medidas sutilezas burocráticas e legais, como pagar impostos, votar, ou ser um trabalhador honesto, esforçado e orgulhoso de si, nos eximimos cinicamente.
6) A PRÁTICA DO ABOLICIONISMO PENAL
Sim, assumo que parece maluquice. Na primeira vez em que ouvi falar de Abolicionismo Penal, a coisa simplesmente não entrava na cabeça: “Mas como assim”?! O fato é que a idéia do Abolicionismo Penal assusta; aliás, como toda ruptura radical com paradigmas ampla e tradicionalmente aceitos. Os abolicionistas, bem como os minimalistas, redimensionam todo o sistema de justiça, bem como o próprio conceito desta – isso porque eles rompem com a lógica maniqueísta que compõe o mais íntimo de nossas identidades e valores morais. O Abolicionismo é, por excelência, a filosofia anarquista aplicada à prática: ou seja, ele vem pulverizar e destruir aquilo que, no nosso intimo, sabemos que está errado mas não queremos enfrentar de frente – pois optamos pelo mais cômodo.
Então, o primeiro passo é romper noções morais tradicionais, por meio do exercício ético (isso tanto no âmbito privado quanto público), e gerar deslocamentos radicais de percepção do mundo à nossa volta. Mas alguns diriam que isso levaria décadas, talvez séculos! Na verdade não, e é Louk Hulsman quem fala bem disse em entrevista (Revista Verve) no qual foi perguntado sobre esse assunto:
“Todos nós tivemos esta experiência! (de conversão) Em primeiro lugar, através da história, sabemos que todas as civilizações viveram de acordo com ordenamentos e expressaram visões que, hoje, são totalmente incompreensíveis. Como se pôde acreditar nas bruxas e acreditar ainda que, queimando-as, se poderia evitar toda sorte de catástrofes? (...) e se poderia dizer que tais crenças desapareceram gradualmente. Mas é possível citar outros exemplos mais próximos de nós e que evocam reviravoltas espetaculares: a abolição da escravatura e a proibição de castigos corporais nas escolas, pondo fim, subitamente, a práticas que não compreendemos mais não só como podiam ser aceitas, mas sobretudo como podiam ser desejadas ao nível dos princípios. (...). Outros exemplos paradigmáticos são bastante atuais: a desvalorização dos ritualismos religiosos, a reviravolta no papel da mulher, a percepção sobre a homossexualidade e as drogas, o sexo etc.
Situação interessante pra pensar sobre isso seria, por exemplo,a diferença numérica absurda entre a população carcerária norte-americana e do resto do mundo. Por que isso acontece, pelo fato dos americanos serem um povo criminoso? Claro que não, mas sim devido às diferenças sócio-econômicas e culturais específicas e, principalmente, pela diferente forma de reagir e entender o “crime”.
Enfim, tal deslocamento pode, e deve, ser levado à cabo no âmbito das questões relativa à violência, ao crime, à noção de espaço público e de funcionamento das instituições políticas e econômicas atuais. Há pesquisas que mostram que grande parte dos fatos criminalizáveis, não são vividos de forma traumática se comparado com uma série de outros fatos corriqueiros de nossa vida, de modo que acabam sendo vistos como problemas comuns. Inclusive, a baixa procura que há (em termos proporcionais), pra se resolver “crimes” no âmbito da justiça penal, simboliza justamente o fato de que esse, nem sempre, é visto como o melhor caminho pra solucionar a questão.
Negrão evidencia que: “Quando o sistema penal se apropria de um assunto, ele o congela, de modo que jamais será interpretado de forma diferente da que foi no início. O sistema penal ignora totalmente o caráter evolutivo das experiências interiores. Assim, o que se apresenta perante o tribunal, no fundo nada tem a ver com o que vivem e pensam os protagonistas no dia do julgamento. Neste sentido, pode-se dizer que o sistema penal trata de problemas que não existem.”
Aprendemos na escola que tudo à nossa volta funciona numa perspectiva voluntarista (no sentido de que é só querer e ter vontade política que as coisas acontecem). Aliás, a glorificação do sistema democrático como conhecemos, apela justamente pra esse argumento (soberania e vontade populares), sendo que, na verdade, sabemos que não é só votando a cada quatro anos, por “melhor” que escolhamos nossos representantes, é que as coisas vão mudar. A representatividade e a burocracia demolem o voluntarismo e a intencionalidade do cidadão que, existe sim, mas só numa relação cara-a-cara, direta, onde agimos por conta própria e vemos o resultado dessa ação. Quanto ao voto, ou ao processo perpetrado na justiça, esses escapam de nosso controle e perdem o interesse ou um necessário esforço reflexivo sobre a sua mudança necessária. Entra aqui a proposta abolicionista.
De acordo com Edson Passeti: “O abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na ruína da cultura punitiva da vingança, do ressentimento, do julgamento e da prisão. Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sistema penal moderno, os efeitos da naturalização do castigo, a universalidade do direito penal, e a ineficácia das prisões (...), e opera fora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação geral das penas, para lidar com a infração como situação-problema, considerando cada caso como singularidade”
Nesse contexto, as práticas abolicionistas visam trazer de volta para a sociedade, para vítima e o sujeito do “crime”, o direito de resolverem, de foram satisfatória, a “situação-problema” em questão. Voltando a Passeti (Revista Verve), ele coloca que os abolicionistas lidam com “situações-problemas e não com crimes, com pessoas e não procedimentos, com acasos, tragédias e desassossegos em busca de uma solução anti-autoritária, anti-penalizadora”. Aqui não existe a preocupação normativista de enquadrar e rotular situações dentro de categorias estanques e deslocadas, no espaço e no tempo, próprias dos códigos penais mundo afora.
O Abolicionismo é muito conveniente em vista dos problemas que passamos na atualidade. Ele procura reforçar laços de solidariedade extremamente desgastados por meio da valorização do diálogo e do encontro entre o ‘NÓS’ e o ‘ELES’, a fim de dissolver essa perspectiva ética que vem nos arruinando – ou seja, funciona como uma ótima arma contra o processo de dicotomização, atomização e discriminação que o sistema reproduz. A preocupação dos abolicionistas é resolver as contendas sociais sem gerar mais violência,a fim de diminuir a ocorrência daquelas. Visa-se o incremento da cidadania de ambas as partes: vítima e sujeito – o que, atualmente, é justamente negado pela prática do direito penal simbólico e pelo sistema carcerário, que acabam aumentando, ainda mais, os crimes.
O Abolicionismo, de acordo com Roberta Negrão: “Propõe a criação de microorganismos sociais baseados na solidariedade e fraternidade, objetivando a reapropriação social dos conflitos entre agressores e ofendidos, e a criação espontânea de métodos ou formas de composição. (...) As alternativas utilizadas para dirimir os conflitos sociais existentes, e com os quais nos deparamos diariamente, deve permitir a flexibilidade em sua utilização. Todas as medidas utilizadas para solucionar os problemas precisam adaptar-se à realidade dos envolvidos, visto cada fato ter sua dinâmica própria. A justiça penal deverá tornar-se totalmente não-legal, deixando que os próprios envolvidos encontrem solução para as situações problemáticas, o que já acontece em muitos momentos, nos casos em que o sistema legal existente não consegue abraçar muitos dos delitos cometidos em nossa sociedade.”. Uma iniciativa interessante nesse sentido, é a criação de Cooperativas de Justiça, que funcionaria da mesma forma como se dá com quaisquer outras cooperativas.
É mais uma vez Passeti quem sintetiza bem a idéias: “O abolicionista trata cada caso como algo especial, como situação-problema e não crime ou infração. Procura compreender a situação dos envolvidos, algozes e vítimas, tomando partido de ambos. Anti-universalista, reconhece a verdade em cada parte e busca a solução pelo lado de fora, o da conciliação capaz de propiciar uma resposta-percurso que evita a prisão e, ao mesmo tempo, incentiva a indenização. Uma resposta-percurso que não se transforma em modelo, que é avessa à filantropia, que não seqüestra a palavra ou as vontades das partes, não as submetem a autoridades superiores de juízes, promotores, advogados, técnicos de humanidades, lideranças, etc. e tal. Promove, isso sim, uma conversação entre envolvidos e pessoas diretamente relacionadas ao caso, autoridades despojadas de seu poder universalizador de julgar.”
E voltando a Negrão: “A proposta abolicionista é promover um encontro entre os envolvidos, valorizando especialmente a expectativa do ofendido (...) Assim, a vítima sentir-se-ia mais justiçada, pois ela própria decidiu o que aceitar como reparação (moral ou material), e o delinqüente teria maior chance de avaliar seu ato e reeducar-se, frente as conseqüências que podem fazê-lo refletir e não despertam um sentimento de injustiça e vingança em seu âmago.”
Em outras palavras, o abolicionismo tem a pretensão, nada humilde, sejamos francos, mas não por isso utópica, de democratizar, de fato, para além desse simulacro de Democracia que vivemos, as relações sociais em todos os seus níveis.
Agradeço a paciência!
Saúde a Anarquia pra todos!
Informe-se mais:
Revista Verve
Entrevista com um dos criminologistas críticos mais ativos no Brasil
Entrevista com o criminologista Sebastian Scheerer
Brasileiros e Direitos Humanos
Texto de Roberta Negrão
Texto Edson Passeti sobre Abolicionismo Penal
Projeto de Lei prevê mais rigor contra drogas
Criminalização dos downloads via P2P no Brasil
Enquête no Site do Senado sobre maioridade penal
O debate do abolicionismo é realmente complicado pois toca em diversos preconceitos arraigados e de certa forma naturalizados em nossa sociedade.
ResponderExcluirA visão que desumaniza o criminoso é amplamente aceita e reforçada cotidianamente nas páginas policiais, programas sensacionalistas das rádios e TVs brasileiras e conversas informais em todos os espaços.
Além disso, possuímos uma lógica punitiva totalmente desproporcial presente no código penal brasileiro. Crimes que em nada afetam a integradidade das pessoas, como o furto, são condenados com pesadas sanções de privação de liberdade.
Ainda que o abolicionismo possa parecer uma realidade distante, nas lutas cotidianas podemos combater as diversas visões que sustentam o sistema penal brasileiro.
Denunciar as crueldades a que detentos são expostos todos os dias, apontar os absurdos de nosso código penal, afirmar a necessidade de uma humanização geral, não só dos criminosos, mas dos incontáveis excluidos, são algumas ações cotidianas que podem contribuir para a busca de um rompimento radical com o atual sistema penal que nos é imposto.
Essa é minha atual luta... mas como é dificil... pois de certa forma luto sozinha!
ResponderExcluirA maioria das maes de detentos tem medo de lutar pela dignidade de seus filhos encarcerados. Mas continuo na luta e espero vencer...
Gostei muito do texto, realmente muito bom.
ResponderExcluirEspero que não se encomode com o fato de ter publicado ele em algumas mídias. Tento com isso trazer o debate sobre esse assunto delicado e difícil de ser aceito.
Penso que o esforço dessa luta é muito válido. Devemos resistir!
Saúde e Anarquia!
Obrigado, Estriquinina Social.
ResponderExcluirPublique à vontade, só não se esquece de citar ou linkar a fonte.
Até!