Eles não vieram do espaço, não foram criados por uma inteligência maligna e sobrenatural, muito menos representam a dominação de uma raça ou dinastia sobre as outras. Ainda assim, muitos de nós somos seus escravos, nós que os construímos, passamos a atribuir a essas invenções potencialidades mirabulosas, tornamos de bom grado seus dependentes. Olvidamos que um dia fomos livres.
Nas cidades, esses mastodontes de metal imperam. São eles que determinam o ritmo do fluxo de pessoas e mercadorias. Os carros querem ser onipresentes, consideram-se com a incumbência de dominar tudo e todos, cada metro quadrado livre deve lhes pertencer. Trata-se de uma concepção aberrante de espaço, na qual toda irregularidade e toda forma de vida dever ser aplainada, eliminada, para dar lugar a superfícies revestidas de betume, tristes, feias, sem vida.
O carro é uma máquina, uma máquina do mau, uma engenhoca melifica, uma engrenagem assassina, mas uma máquina. O que comanda suas ações – seu coração, por assim dizer – é o motorista. Um pobre escravo que tem a ilusão de poder.
O carro é inimigo de uma concepção humanista da cidade, para o motorista não existe o público, apenas vias interligadas, e em certo sentido, privativas, que cumprem a função de integrar um ponto ao outro. A acepção tradicional de uma rua não existe para o automobilista, coubesse a ele, até as calçadas seriam arrancadas. O motorista não se interessa pelas árvores, bancos, pássaros ou homens, o que importa é uma avenida mais larga para facilitar a ultrapassagem, uma vez que ele não se solidariza nem com o veículo que segue ao lado do seu.
O motorista quer ter a ilusão de liberdade, controle e segurança, mas não há nada mais contrário à liberdade, ao controle e à segurança do que o carro.
Liberdade para se enclausurar em uma bolha metálica, sentindo-se abafado, limitado, contraído, acuado. Constantemente invadido por olhares inimigos, demandando uma vigilância constante para não ser ultrapassado ou esmagado por um veículo maior.
O motorista não controla sequer seus sentimentos, frequentemente acometido por sensações de frustração, impaciência e irritação. Tudo em sua frente é um obstáculo. Qual é a possibilidade de controle em um engarrafamento? Além da odiosa espera, nenhuma.
Não há nada mais seguro e cômodo do que um carro. Segurança de que, mais cedo ou mais tarde, você será lesado não há. O motorista sabe que um dia será assaltado, sabe que vivenciará um acidente, também sabe que em algum momento o motor sofrerá um dano (irreversível ou remediável) e que, provisoriamente, ele ficará destronado de sua máquina perfeita. O seguro-automóvel visa protegê-lo desses incidentes e acidentes, desses constrangimentos, dando-lhe um pouco de coragem, como se nem tudo estivesse perdido. Pobre motorista, escravo do seu carro, escravo do sistema financeiro, escravo de tantos temores.
E quantas comodidades esse veículo proporciona! Paga-se os impostos, paga-se o seguro, paga-se os pedágios, as taxas para estacionamento, paga-se aos flanelinhas, paga-se a manutenção e o combustível. Paga-se tudo isso para sofrer o congestionamento das vias, para se isolar no átrio da máquina, perdido em um lodaçal de carros, todos vítimas de uma mesma propaganda enganosa.
Não, o carro não te deixa mais veloz. Pelo contrário, ele justifica a expansão e extensão das vias, uma vez que os serviços e os equipamentos são construídos cada vez mais longe uns dos outros. O carro te deixa mais lento, posto que a distância a ser superada é sempre crescente.
Não, o carro não te deixa mais viril. Pelo contrário, ele o torna sedentário, fraco, preguiçoso, assustado. Para um genuíno motorista, um garoto vendendo balas no semáforo é um ladrão e deve ser evitado.
Não, o carro não te deixa mais feliz. Aquele formigamento na mão, aquela dor envolta do pescoço, aquela falta de ar não é felicidade, tem outro nome, stress.
Eles não são uma praga divina, são uma criação humana, uma ferramenta, uma arma, um desejo de potência nunca realizado. Máquinas obsoletas, necessariamente incompatíveis com a concepção de cidade que defendemos.
Queremos respirar ar puro e não dióxido de carbono. Queremos jardins e bosques e não pátios de estacionamento, queremos fraternidade e não o ultra-individualismo.
carros, nós os inventamos e nós os superaremos.
Não creio que o carro seja uma invenção completamente superada.
ResponderExcluirCreio que ele tem lugar, desde que uma série de transformações sejam pensadas...
Definitivamente, os carros não condizem com as grandes cidades... seu lugar é outro. A cidade baseada no carro é a morte do urbano.
Carros baseados em queima de combustível fossil é uma aberraçao no mundo atual. Com todas as possibilidades tecnológicas é patético ver esse tipo de coisa.
A fabricação e a venda desenfreada de carros é outra esquisitice que envolve esse universo.
Automóveis podem ser sim, em escala muito menor do que vemos hoje, uma alternativa. Mas defenitivamente não podem ser a única, nem mesmo a principal saida para o problema da mobilidade humana, especialmente a urbana.
Até onde essa mentira vai, não se pode afirmar. Mas cada vez mais a sociedade do automóvel é um absurdo insustentável.
Texto fantástico!!! Muito bom David!!
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