sexta-feira, 23 de maio de 2014

Torpor mental


I) O torpor mental é (tristemente) necessário. Dentro da prisão em que vivemos o torpor nos preserva do enlouquecimento e da auto-destruição, fazendo-nos entender, pragmaticamente, as vantagens da alienação. O vinho que os carcereiros servem turvam nossa vista, e assim esquecemos que nossos pés e mãos estão presos em grilhões; algemas novas e antigas.

II) A jaula. Todos nós sabemos (ainda que inconscientemente) que ela existe, mas é indigno reconhecer essa evidência e nada fazer, por isso o vinho, o vinho nos faz esquecer.

III) Toda rebeldia infantil é uma percepção inconsciente da jaula, por isso a disciplina é importante, trata-se da preservação da criança, com a fabricação de uma consciência de presidiário.

IV) O nosso processo de subjetivação encontra-se, mais do que nunca, fragmentado. A possibilidade de articularmos um pensamento de resistência é combatido a tudo custo. As tecnologia são dispersão, elas nos conduzem para o não lugar, o não pensar.

V) A tecnologia não é libertária. Ela não pode ter um uso libertário. O processo de autonomia significa a recusa aos instrumentos historicamente forjados para a fabricação da jaula. Em outros termos é um contra-senso pegar em armas falando em paz. Arma é arma. Está aí uma contradição que a práxis atual não pode resolver.

VI) Há vozes que gritam em nossas cabeças, elas não nos permitem ficarmos em silêncio, a contemplação não se coloca como uma maneira historicamente constituída de se relacionar com o mundo, porque não há oportunidades e também porque ela seria dolorosa. Temos que ser compreensíveis, o momento de ruptura com o torpor mental realmente é doloroso. Quando o afastamento (mesmo que provisório) de todas as tecnologias que nos escravizam é viabilizado (instante fugaz, mas possível) a dor da perda de nossas vidas individuais e coletivas é muito forte. A questão do sentido da vida transparece com clareza. Por que vivemos? Para ser consumidores? Para ser envenenados, escravizados, iludidos, esgotados?

VII) O atual desenvolvimento das tecnologias está a operar uma revolução em nossos processos de subjetivação do real, captamos apenas os fragmentos, a totalidade não é mais alcançada. A própria relação do indivíduo consigo mesmo torna-se mediada pela máquina. Basta olhar as cidades, isso fica evidente, as pessoas são conduzidas por pequenos aparelhos portáteis, com fios que se ligam diretamente às mãos, aos ouvidos, ao cérebro, a mente.

VIII) A solidão e o silêncio, o diálogo do indivíduo consigo mesmo, tornaram-se impraticáveis, de modo que as pessoas ficaram gratas pela consciência fabricada que que lhes foram impingidas. Suspender essa inteligibilidade industrial é contemplar um abismo, percepção de que o homem foi apartado da sua natureza. Não se trata aqui de uma discussão essencialista ou mesmo primitivista, mas da constatação de que somos todos ciborgues.

IX) O torpor mental é a maneira como a consciência individual e coletiva se manifesta, uma confusão constante, que só se amaina no processo do comprar e do vender. Nossas cidades estão cercadas de drogarias: drogas de todas qualidades e variedades são vendidas, dos fármacos aos eletrônicos, dos alimentícios aos cadeados e às grades. O torpor é a defesa para que nossa subjetividade pura e original não venha à tona. Nos drogamos para não compreender que estamos drogados e viciados. Compramos cortinas para tampar as grades e nos imaginarmos livres.

X) Estamos viciados com a segurança/insegurança. Isso significa que queremos grades cada vez mais fortes na ilusão de que esse gradil de aço nos protegerá da verdadeira cerca, metabolicamente construída pelo capital e pela mentalidade exterminista do ocidente.

XI) A dúvida que fica é saber quantos poderão suportar a dor de ver com objetividade a gaiola à qual estamos aprisionados. A primeira reação é a da violência, quando não do auto-extermínio. Sem uma estratégia coletiva a autonomia não será possível. Por isso os catastrofistas acham que só o caos é a salvação. Mas não basta destruir a gaiola, é necessário decidir o que vem depois.


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