um (possível) começo
Os corpos falam, os corpos se comunicam. Quando o contato entre eles é tenso, podem fazer circular mais sangue nas faces, fazer com que os corações inflem num ritmo acelerado, fazer subir a pressão interna, enfim. Quando, ao contrário, o encontro constrói uma atmosfera harmônica, os corpos podem liberar hormônios excitantes, estimulantes e podem experimentar uma serenidade. Em ambos os casos, os corpos podem querer explodir.
Todo esse começo talvez não importa muito, mas pode funcionar como uma pequena brasa para fomentar uma discussão sobre os corpos. Corpo e política, corpo e economia, corpo e cultura, corpo e sociedade. Quantos temas não poderiam sair desse início de conversa, que já chega atravessando milhares de anos de bate-papos! Partirei de pequenos pontos para criar o esboço e o início de um diálogo sobre o corpo e as inúmeras facetas (fragmentadas) da vida humana.
O corpo sexuado, tal como conhecemos hoje, é algo relativamente recente. Há poucos anos tornou-se consenso científico (chegando ao senso comum, há pouquíssimos anos) a ideia de que o corpo feminino e masculino são completamente distintos e intransponíveis. Há menos tempo ainda, nasceu, cresceu e fortaleceu-se uma discussão crítica em relação a essa dualidade dos corpos, repensando-a e propondo, não só a observação, mas a valorização da multiplicidade dos corpos humanos. Parece difícil imaginar qual a relação que isso tem com política. Bom, na verdade defendo que a relação com a política é total. O questionamento da dualidade dos corpos, elaborado no contexto das práticas e teorias feministas e queer, veio propor novas aberturas para a ação política de corpos, que antes eram tidos como anômalos, exceções, doentes, deficientes e privados de direitos. Essas propostas consistem também em uma tentativa de refletir sobre os corpos como construções político-culturais, como construções que perduram ao longo de suas próprias existências e não como corpos pré-fabricados. Os debates apresentaram outras perspectivas em relação à formação do sujeito e das subjetividades, que é vista, a partir de então, como um processo contínuo de construção de si, num constante diálogo entre corpo e alma (ou mente, se preferir) e entre si mesmo e os outros.
Se a construção da subjetividade perpassa pela formação ética e moral, se perpassa pela relação que o sujeito em formação mantém consigo mesmo e com o mundo em sua volta, o corpo não poderia escapar dessa construção. E como estamos falando de relações que o corpo mantém consigo e com o mundo, estamos falando de relações de força, de relações políticas, de relações de desejo, de relações de guerra ou de diplomacia. Mesmo as subjetividades virtuais estão sujeitas a isso. Ora, o “corpo virtual” também trava relações (de sensações, sentimentos, estímulos, reações físicas, químicas, sociais, etc) com o “corpo orgânico” e a psiquê, nesse caso, mantém uma relação dupla com esses dois corpos.
Mas, seguindo o raciocínio, não seria somente por se tratar de uma questão ética, que poderíamos classificar a formação do sujeito (sua percepção de si mesmo como um sujeito de alma e corpo) como uma questão política. Os corpos são historicamente marcados pela cultura e tudo aquilo que os circundam - as ruas, os gestos, os olhares, os toques, os adornos, etc - fazem parte de sua formação. 'O automóvel, como um espartilho, também os molda e os conforma a um modelo postural. É um instrumento ortopédico. Os alimentos selecionados por tradições e vendidos nos mercados de uma sociedade modelam os corpos mediante a nutrição; impõem-lhes uma forma e um tônus que têm valor de uma carteira de identidade.' Os diferentes tipos de estimulantes ingeridos como o café, o aminoácido, as pílulas para dormir, o Biotônico Fontoura, os complexos de vitaminas, ou aqueles consumidos pelo desejo como as imagens e representações de saúde, eficácia, glória, felicidade, liberdade, assim como os óculos, as vestimentas, o cigarro, a música, o cinema, a indústria pornográfica, as imagens e os impressos em geral, entre outros materiais cotidianos, refazem e reconstroem, à sua maneira, o físico das pessoas.
No contexto de desenvolvimento do capitalismo, dos séculos XIX e XX, foram construídas representações sobre a vida e sobre o corpo, que ainda são caras entre nós. A velocidade, a maquinaria, a eficiência de produção e a disseminação de informações foram sustentadas por um sem-número de aparelhos disciplinares que procuravam corrigir os corpos para que eles pudessem existir sob a única forma historicamente possível: a da glória do progresso, do sucesso. Porém, seria demasiado inocente pensar que a disciplina procurou conformar os corpos em um padrão único de vitória, beleza e sucesso. Os códigos criados são consumidos, digeridos e transformados cotidianamente e os aparelhos disciplinares aprenderam a lidar com a diversidade dos corpos, procurando eliminar quaisquer possibilidades de conflitos dessa forma corporal, que deseja a 'glória do progresso'. Para tanto, as técnicas de marketing ajudaram a difundir o discurso da homogeneidade travestido de liberdade, de igualdade, confundindo todos os sentidos e criando camadas protetoras, que auxiliam na contenção de conflitos.
Na verdade, os corpos só se tornam corpos graças à sua conformação aos códigos com os quais entram em contato. Pois onde e quando é que há algo do corpo que não seja escrito, refeito, cultivado, identificado pelos instrumentos dos sistemas simbólicos, elaborados socialmente? E eu diria mais, pelos instrumentos de uma simbólica social, que é política, que identifica e valoriza determinadas funções, características e potencialidades dos corpos e não outras! Ora, as deliberações pelo uso ou não de cigarros, pela exploração de um tipo de alimento e não de outro, não são feitas puramente por questões sociais ou culturais. Na verdade, a política entra em contato com essas facetas da vida procurando deliberar e apresentar soluções e propostas de ações para determinados problemas da comunidade/sociedade ou dos grupos. E é assim que funciona com as políticas do corpo.
Mas poderíamos ir além, caso essa introdução, já demasiada longa, não convença que falar de corpos é falar de política. Poderíamos, então, pensar nos corpos fascistas, comunistas e capitalistas. Seria engraçada a história da formação das instituições juvenis, se não fosse duramente cruel. O interessante é que as juventudes fascistas, comunistas, mas também as capitalistas, acabaram seguindo princípios morais e éticos praticamente comuns, não fosse a especificidade dos orgulhos nacionais e dos interesses compartilhados. O orgulho era o que fazia a diferença dos diversos grupos de jovens surgidos durante os anos de 1900-1930. A juventude hitlerista, a comunista, a fascista, o escotismo – em seu formato cristão ou laico, mas na maioria das vezes nacionalista –, a ordem DeMolay, todas essas entidades, entre outras que não consigo enumerar agora, fazem parte de um momento crucial, que ainda borra as consciências contemporâneas. Elas foram criadas por e num momento de desenvolvimento dos discursos da raça e do progresso, que defendiam o refinamento da nação a partir do desenvolvimento físico de sua população, a começar pelos jovens. Desenvolvimento físico passava, então, a ser sinônimo de desenvolvimento nacional. A dinâmica do século XX parece transformar os corpos em maquinarias capazes de superar aquilo que fosse tido como impossível, ano após ano. E essa dinâmica permaneceu incrustada em nossos corpos. Até hoje somos herdeiros desse tipo de pensamento e mesmo as ciências humanas caem nessa armadilha, ao tentar dizer algumas palavras sobre sua sociedade ou sociedades que lhes são alheias. É fácil identificar o discurso linear sobre o desenvolvimento das populações em análises, por exemplo, sobre a América, a Ásia e a África, ou mesmo sobre os incidentes no Haiti nas últimas centenas de anos.
É claro que o discurso não é racista como os racialistas desenvolveram nesses dois últimos séculos. Mas o discurso da raça passou a ser tratado de forma sutil(mente escancarada) no discurso da genética, do desenvolvimento científico e permanece no discurso sobre “desenvolvimento politico-econômico” (leia-se: no discurso que verifica – para justificar suas ações – o fato da população ter ou não alcançado a civilização, democratizando-se e capitalizando suas riquezas).
Os corpos de pessoas tidas como “fracas”, “aberrações”, “anti-naturais”, “preguiçosas” e “que não gostam de trabalhar”, são frequentemente destruídos em praças, viadutos, parques, favelas, fazendas, acampamentos e ocupações de resistência, mundo afora. Este é um fato muito simples de limpeza política travestida de “problemas sociais”, de “criminalidade”, ou de “problemas de segurança pública”. Noções inventadas há pouco tempo – apesar desse tipo de matanças existirem há séculos – sob a égide do progresso, do desenvolvimento industrial, tratados, sem nenhum escrúpulo como pauta para o desenvolvimento humano, a custo de milhões de corpos destroçados. E é interessante perceber que hoje em dia o desenvolvimento recebe um nome bonito aos nossos ouvidos: "desenvolvimento sustentável".
Enquanto meus dedos tocam o teclado do computador, outros corpos travam outras lutas, circulam, experimentam e criam sensações, relações, laços, afetos, dores, conflitos, cultura e formas políticas. Estamos sempre falando que é preciso pensarmos sobre nós mesmos a partir de outra perspectiva. Ainda não sei qual, mas qualquer que seja, parece-me importante levar em consideração nossos corpos e o que estamos ajudando a fazer de nós mesmos.
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