O presente texto faz parte de um esforço de reflexão que, entre outros componentes, objetiva um esclarecimento quanto possibilidades de resistência às poderosas tendências hegemônicas da contemporaneidade. Embora os cenários que nos circundam se aparentam bastante sombrios, há espaço para avaliações não derrotistas.
As principais propostas de resistência evocadas por grupos de tendências anarquistas ou socialistas parecem padecer de um mesmo mal, ou são míopes quanto as condições mentais e espirituais dos tempos em voga ou se perdem em bairrismos e especializações contraproducentes. De um lado há aqueles que querem atuar nos moldes dos levantes políticos do século XIX e da primeira metade do século XX: ou esperam uma revolução orquestrada por uma vanguarda mega-consciente de sua importância no devir histórico ou um levante espontâneo, pronto a varrer todos os ditames da opressão (desse modo despolitizando a própria ação política). Do outro lado, vemos grupos que desistiram das atuações holísticas, universalistas e engatadoras, suas atuações pautam-se por um imediatismo e localismo: freeganistas, ciclistas, vegans, web-ativistas etc.
Bem, os primeiros não valem maiores comentários – houve momentos nos quais o socialismo e o anarquismo em moldes clássicos eram possibilidades concretas. Porém esse tempo já passou e, idealizações românticas a parte, não há porque insistirmos em uma rememoração acrítica dessas experiências. Os grupos localistas merecem uma análise mais pormenorizada, tendem a conseguir integrantes para suas bandeiras com causas concretas e que atravessam o cotidiano dos grandes centros urbanos.
Os ciclo-ativistas e os freeganistas exemplificam essas correntes, a recusa ao automóvel e à sociedade de consumo, a busca por uma mobilidade e o direito ao usufruto dos excedentes conscientemente descartados. Ambos questionam valores da sociedade capitalista e, em um nível mínimo que seja, apresentam soluções para os problemas que apontam. No entanto o potencial do capital em absorver contestações é impressionante, a sua versatilidade só merece elogios, já que as crises e as dificuldades são importantes momentos para sua reinvenção.
Quando todas as vias estiverem abarrotadas de automóveis e estes veículos perderem a áurea que os cercam, os publicitários não pensarão duas vezes em elevar a bicicleta ao patamar de novo símbolo de status e desejo de consumo. Isso em nada interferirá no sistema do capital. O mesmo pode ser dito sobre as ocupações de prédios abandonados, a especulação imobiliária ainda tem larga faixa para explorar e os invasores não serão vistos como usurpadores, mas sim como futuros clientes a serem assimilados. Mesmo os que fogem à sociedade de consumo não estão ilesos, o exército de consumidores na ativa possibilita a manutenção de uma divisão na reserva.
Estou cético quanto aos movimentos contestatórios em moldes localistas que proliferam no cenário urbano e que não buscam vínculos com um eixo global. Avanço essa reflexão com a ideia de que as grandes cidades não são propícias para a prática anarquista. As práticas libertárias antes de se manifestarem como ação política se constituem em um fundo ideológico, cultural e subjetivo. Os moradores da cidade encontram-se dependentes da ação regulatória do Estado, que oferece a (falsa) sensação de segurança e normalidade, mesmo que em níveis precários. O controle da ordem, a iluminação pública, a limpeza urbana, o fluxo do trânsito e a gestão de outros serviços essenciais integram o rol das prerrogativas do Estado e de unidades jurídico-institucionais ou jurídico-particulares de poder.
As comunidades não compreenderiam facilmente a tese de uma falência do Estado como pré-requisito para uma vida cívica mais completa. Explica-se as dificuldades do anarquismo na cidade, a noção de um Estado protetor está internalizada. O próprio marxismo teria maiores facilidades para desenvolver nesses contextos, pois uma ditadura do proletariado é menos distante do que a perspectiva de uma ausência do Estado. Muitos podem ser convencidos de que a vida melhoraria se os oprimidos detivessem o poder e reformassem a ordem social, no entanto a ausência de estruturas de poder aterroriza os habituados com a vida de cativos.
Os movimentos libertários mais consistentes se desenvolveram em regiões rurais (ou de tradições rurais), onde a interiorização das instituições coercitivas limitou-se a superfície, dando ampla margem para a vida comunitária e colaborativa. A tese espontaneísta do anarquismo é verdadeira para cenários nos quais as redes vicinais preponderam, os mutirões são frequentes e a economia moral barra as pressões mais mercantis. Os grandes fazendeiros e as elites locais são associados ao Estado, portanto libertar-se da opressão equivale ao término dos poderes institucionalizados.
Seguindo essa linha de argumentação, aceitaremos a distinção entre campo e cidade como a diferenciação entre a fraca internalização e a forte internalização dos valores de submissão perante o Estado. Com a ausência de um poder estatal em uma megalópole como Nova York, por exemplo, e com a notória dificuldade dos anarquistas em se organizarem adequadamente em momentos críticos – vide a história militar da Guerra Civil Espanhola – não seria muito absurdo supormos que o caos, de fato, prevaleceria nos primeiros momentos (algo passível de se prolongar durante anos ou décadas).
A abordagem municipalista resolve, no nível teórico, esse problema. O movimento de emancipação seria das áreas rurais para os povoados e distritos, dali para as pequenas cidades e, em seguida, para as médias, a adesão dos grandes centros urbanos seria uma consequência final e esperada. O esfacelamento do Estado, no entanto, só se viabilizaria em conjunto com o desmoronamento do capital. Uma confiança nutrida no municipalismo não deve subestimar as habilidades dos sistemas piramidais do poder em eliminar os focos realmente ameaçadores.
Conforme dito anteriormente, neste texto e em outros posts, a ausência de uma articulação global de questionamento às forças hegemônicas pode reduzir uma promissora estratégia a um ato inócuo. Ao contrário do que se pensa, o Estado subserviente ao capitalismo é relativamente tolerante, e dentro de uma racionalidade do custo-benefício sempre se pergunta se vale o desgaste de coibir determinada expressão. Mas de modo algum há negligência quando as contestações atingem determinadas dimensões. Nesse sentido, uma das mais importantes dissonâncias à ortodoxia liberal-capitalista vive no EZLN, em Chiapas, e não obstante todo o seu potencial fabuloso, tal experiência não serve eficazmente como modelo de ação para outras regiões do mundo. Só a tradição política mexicana, com suas revoluções, sua rebeldia camponesa e seu cripto-anarquismo explicam esse novo projeto de mundo, infelizmente geograficamente muito restrito se comparado à onipresença do capital.
O anti-consumismo pode até fundamentar ideologicamente uma ação, e o municipalismo colocá-la taticamente em movimento, mas falta a estratégia engajadora e aliciadora. Algo que será encontrado na causa ecológica, o desafio mais poderoso ao capitalismo contemporâneo. Cada época forja as armas que serão utilizadas para sua derrocada – todos nós sabemos a quem pertence essa ideia – e o atual sistema de produção não foge a regra.
As atuais articulações corporativas para a defesa do meio ambiente são fracassadas e insinceras, mas têm cumprido o seu papel em conquistar novos adeptos para o capitalismo verde. Fala-se em preservação, em responsabilidade ambiental, em tecnologias não agressoras ao bioma. Entre o discurso e a prática vai uma larga distância, mas os empresários não podem mais minimizar as questões ambientais, pelo contrário, elevaram-nas ao patamar de importância máxima, tanto que já há uma especulação financeira na qual se vende o direito de poluir. O mercado de carbonos não é piada, mas a materialização das contradições do capitalismo,entre sua nova promessa preservacionista e seu conhecido afã predatório.
Muitas pessoas estão suscetíveis a essa mensagem, os lugares comuns sobre a defesa da vida esconde um processo de destruição sem precedentes que está em curso. Manutenção de reservas, reciclagem, compensações pelo desmatamento, uma encenação que aplaca os remorsos das classes médias. Todo modo, eis um compromisso que o Estado e o capital assinaram e que não podem voltar atrás impunemente. Além disso, o iluminismo trouxe a entronização definitiva do homem como entidade ética, este se tornou por sua racionalidade um ser superior. Em contrapartida a natureza despolitizou-se, realçada a condição de reserva das vontades humanas. No século XIX se viu uma romantização do natural em contraponto a leitura da civilização como o progresso. Uma das consequências desse processo é que se pode defender as causas ambientais tratando-as como se não consistissem em problemas políticos.
As corporações usam desse engodo: o manejo de animais ou a derrubada de árvores constitui-se tecnicidades, desligadas de qualquer decisão política – impassíveis e imparciais. As mineradoras promovem grandes atentados à vida não porque querem, mas por questão da ordem e método.
As corporações têm fiado as próprias cordas com que vão se enfocar. A intensificação da defesa ao meio ambiente poderá se fantasiar, por sua vez, em uma questão meramente técnica. Um discurso eficaz para convencer a opinião pública, enquanto nos subterrâneos da resistência surgem os verdadeiros amparos para as contestações radicalizadas. Não podemos negar que os tempos são de conservadorismo generalizado e não há nada que o homem mais deteste do que o próprio homem. O projeto sombrio que se materializou teve eficácia em destruir um sentimento de público e pertencimento, todavia a defesa ecológica incrivelmente não se associa a proteção dos oprimidos.
Uma ONG que propõe proteger grevistas do Terceiro Mundo não conquistará muitos simpatizantes, as suas bandeiras vermelhas ou negras são incômodas; também não aparecerão nas mídias oligopolizadas e tão pouco contarão com o apoio de celebridades. Uma ONG que proteja baleias receberá uma repercussão diferente, o verde não postula uma necessária recusa à propriedade e tende a angariar maior simpatia do público. Os movimentos ecológicos conformistas ou moderados poderão ser os escudos para o movimento verde realmente libertário e que reconhece que a salvação do homem implica na inequívoca desestruturação do modo de produção vigente.
No século XXI as pretensões não podem se apequenar, defender a vida no planeta significa o confronto com o capitalismo. A mentalidade preservacionista – nesse momento insignificante – poderá respaldar sentimentos coletivamente compartilhados de identificação com o “natural”. O que agora é cabotino tenderá em ser sincero. No advento da Idade Moderna, os burgueses detinham pensamentos vanguardistas no que concerniam ao comércio e ao lucro, e não com poucas artimanhas conseguiram universalizar tal modo de pensar. Eis o modus operandi que devemos seguir.
Uma boa estratégia é incentivar pequenas frentes locais e regionais, mas dentro de um discurso salvacionista global. A recusa em ter seu entorno, sua morada e suas reservas agredidas por um insano esquema de extração de riquezas pode suscitar vínculos mais sistêmicos. Uma geografia da poluição e uma história das corporações são coordenadas valiosas que dizem respeito mesmo aos mais indiferentes.
O que será retomado nos posts seguintes diz respeito à atuação dos libertários em dois níveis, convencimento e embate. Grupos moderados e com palavras confortantes que adquirem crescente projeção perante a opinião pública, preparando terreno para as tendências radicais e confrontadoras. As duas vertentes se encontram já que há uma retro-alimentação. Espera-se que uma crescente demanda da população por ações “verdes” tenha impacto nos Estados de regime dito democráticos e assim aumente a pressão sobre as corporações.
Vislumbra-se três elementos importantes nas lutas sócio-ecológicas do século XXI. O incentivo à cultura do gratismo – importante nos centros urbanos, que não são produtores, mas consumidores. A atuação em níveis locais/regionais/municipais descentralizando os combates mas tendo como eixo global a perspectiva salvífica da vida. A ênfase na defesa ambiental como estratégia principal em função do seu potencial mobilizador e de convencimento em diferentes níveis sociais e países.
Aqui se tem o início de uma agenda que devemos discutir.
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