I) O torpor mental é
(tristemente) necessário. Dentro da prisão em que vivemos o torpor
nos preserva do enlouquecimento e da auto-destruição, fazendo-nos
entender, pragmaticamente, as vantagens da alienação. O vinho que os
carcereiros servem turvam nossa vista, e assim esquecemos que nossos
pés e mãos estão presos em grilhões; algemas novas e antigas.
II) A jaula. Todos nós
sabemos (ainda que inconscientemente) que ela existe, mas é indigno
reconhecer essa evidência e nada fazer, por isso o vinho, o vinho
nos faz esquecer.
III) Toda rebeldia
infantil é uma percepção inconsciente da jaula, por isso a
disciplina é importante, trata-se da preservação da criança, com
a fabricação de uma consciência de presidiário.
IV) O nosso processo de
subjetivação encontra-se, mais do que nunca, fragmentado. A
possibilidade de articularmos um pensamento de resistência é
combatido a tudo custo. As tecnologia são dispersão, elas nos
conduzem para o não lugar, o não pensar.
V) A tecnologia não é
libertária. Ela não pode ter um uso libertário. O processo de
autonomia significa a recusa aos instrumentos historicamente forjados
para a fabricação da jaula. Em outros termos é um contra-senso
pegar em armas falando em paz. Arma é arma. Está aí uma
contradição que a práxis atual não pode resolver.
VI) Há vozes que gritam
em nossas cabeças, elas não nos permitem ficarmos em silêncio, a
contemplação não se coloca como uma maneira historicamente
constituída de se relacionar com o mundo, porque não há
oportunidades e também porque ela seria dolorosa. Temos que ser
compreensíveis, o momento de ruptura com o torpor mental realmente é
doloroso. Quando o afastamento (mesmo que provisório) de todas as
tecnologias que nos escravizam é viabilizado (instante fugaz, mas
possível) a dor da perda de nossas vidas individuais e coletivas é
muito forte. A questão do sentido da vida transparece com
clareza. Por que vivemos? Para ser consumidores? Para ser
envenenados, escravizados, iludidos, esgotados?
VII) O atual
desenvolvimento das tecnologias está a operar uma revolução em
nossos processos de subjetivação do real, captamos apenas os
fragmentos, a totalidade não é mais alcançada. A própria relação
do indivíduo consigo mesmo torna-se mediada pela máquina. Basta olhar as cidades, isso fica evidente, as pessoas são conduzidas
por pequenos aparelhos portáteis, com fios que se ligam diretamente
às mãos, aos ouvidos, ao cérebro, a mente.
VIII) A solidão e o
silêncio, o diálogo do indivíduo consigo mesmo, tornaram-se
impraticáveis, de modo que as pessoas ficaram gratas pela
consciência fabricada que que lhes foram impingidas. Suspender essa
inteligibilidade industrial é contemplar um abismo, percepção de
que o homem foi apartado da sua natureza. Não se trata aqui de uma
discussão essencialista ou mesmo primitivista, mas da constatação
de que somos todos ciborgues.
IX) O torpor mental é a
maneira como a consciência individual e coletiva se manifesta, uma
confusão constante, que só se amaina no processo do comprar e do
vender. Nossas cidades estão cercadas de drogarias: drogas de todas
qualidades e variedades são vendidas, dos fármacos aos eletrônicos,
dos alimentícios aos cadeados e às grades. O torpor é a defesa para que
nossa subjetividade pura e original não venha à tona. Nos drogamos para não
compreender que estamos drogados e viciados. Compramos cortinas para
tampar as grades e nos imaginarmos livres.
X) Estamos viciados com a
segurança/insegurança. Isso significa que queremos grades cada vez
mais fortes na ilusão de que esse gradil de aço nos protegerá da
verdadeira cerca, metabolicamente construída pelo capital e
pela mentalidade exterminista do ocidente.
XI) A dúvida que fica é
saber quantos poderão suportar a dor de ver com objetividade a
gaiola à qual estamos aprisionados. A primeira reação é a da
violência, quando não do auto-extermínio. Sem uma estratégia
coletiva a autonomia não será possível. Por isso os catastrofistas
acham que só o caos é a salvação. Mas não basta destruir a
gaiola, é necessário decidir o que vem depois.